Paranapiacaba : um pouco de história

Localizada ao sul do município de Santo André-SP, a 33km do centro da cidade e 51km da capital, a antiga Vila Ferroviária de Paranapiacaba é um destino interessantíssimo, dada a curta distância dos grandes centros e o grande interesse histórico, paisagístico e cultural. Neste texto, enumeramos diversos motivos para você visitar esse patrimônio histórico brasileiro, enquanto conhece um pouco da charmosa história local.

Sabe o que é uma Vila? Conheça nosso post que explica as diferenças entre Arraial, distrito, freguesia, vila, entre outros. 

A Vila andreense, que faz divisa com Rio Grande da Serra, Suzano, Mogi das Cruses, Santos e Cubatão, está inserida na Área de Proteção dos Mananciais da Região Metropolitana de São Paulo e integra a Reserva da Biosfera da Mata Atlântica e do Cinturão Verde do Estado de São Paulo. Fica ao lado da Reserva Biológica do Alto da Serra de Paranapiacaba, a primeira estação biológica da América do Sul, criada em 26 de abril de 1909 como “Estação Biológica do Alto da Serra” por Hermann Friederich Albrecht von Ihering.

Reserva Biológica e os viajantes europeus

MUSEU PAULISTA/USPHermann von Ihering com a mulher, Meta, na reservaMUSEU PAULISTA/USP

Por falar em Ihering, o naturalista e médico alemão  visitou em 1909 a região de Paranapiacaba, quando era diretor do Museu Paulista. Ficou tão impressionado com a exuberância local, que comprou uma pequena porção de terra com recursos próprios e ajuda de alguns amigos, com objetivo de fundar “uma estação biológica, com parque e horto florestal” . Chamava o local de Parque Cajuru (palavra indígena que significa “boca da mata”) e lá construiu uma casa para servir de sede. Em 1913, porém, o cientista não conseguia mais arcar com as despesas da estação e a cedeu ao governo estadual. Mais tarde, Frederico Carlos Hoehne, um dos primeiros pesquisadores brasileiros a fazer estudos sistemáticos, abrangentes e de longa duração sobre a flora nativa brasileira, trabalhou para aumentar a reserva, garantir sua preservação e desenvolver infraestrutura adequada à pesquisa científica. Faz parte deste legado, por exemplo, a Casa do Naturalista, um alojamento exclusivo para pesquisadores que necessitassem passar um período maior estudando a flora nativa da região. Saiba mais sobre essa história aqui.

Além de gerações de pesquisadores, o local já recebeu a visita de figuras ilustres, como a ganhadora do prêmio Nobel em Física e Química, a polonesa Marie Curie (leia mais aqui) e o lingüista e historiador Affonso de Taunay, autor dos magníficos Céus e Terras do Brasil e Pequena História do Café no Brasil .

Merece destaque também a visita da artista e ilustradora botânica Margareth Mee, que veio morar no Brasil em 1952 com o marido, o artista plástico Greville Mee. Mee dedicou boa parte da vida para a documentação e a conservação da flora brasileira. Leia mais sobre seu trabalho aqui.

Mee viajou diversas vezes à Amazônia e seus relatos da destruição ambiental que constatava em cada viagem, foram as primeiras denúncias públicas do abandono dos ribeirinhos e a destruição da flora brasileira. A artista defendia a biodiversidade e a conservação dos nossos ecossistemas e não perdia oportunidades: na dedicatória de seu livro “Flores da Floresta Amazônica” escreveu ao presidente Ernesto Geisel: “… espero que goste do livro, porque todas essas plantas estão vivas, mas rapidamente se tornarão extintas”.

Veja delicioso vídeo de Eduardo Bueno sobre Margaret Mee aqui.

Assista aqui o documentário Margareth Mee e a Flor da Lua,

Parque Natural Municipal Nascentes de Paranapiacaba

Unidade de Conservação (UC) Municipal, de proteção integral, com uma área total de 400 hectares de Mata Atlântica no entorno de Paranapiacaba, o parque foi criado em 2003 com o objetivo proteger a paisagem natural da região. Envolto pelos contrafortes da Serra do Mar, o parque também é vizinho da Reserva Biológica e abriga as nascentes formadoras do Rio Grande, além de contribuir com a valorização do patrimônio histórico da vila.

Ao contrário da Reserva Biológica, que não recebe visitantes, atualmente o parque municipal possui seis trilhas abertas a visitação: Trilha das Hortências, Trilha dos Gravatás, Trilha da Pontinha, Trilha do Mirante, Trilha da Comunidade e Trilha da Cachoeira Escondida, e dois Núcleos de Interpretação Ambiental: Olho D’Água e Tanque do Gustavo.

Paranapiacaba e a ferrovia

Além do dotes naturais, a Vila andreense é dona de uma paisagem única, composta de um aglomerado urbano, até hoje ocupado por alguns ex-ferroviários e seus descendentes.  Ex-ferroviários? Sim, foram eles que construíram a vila e eram responsáveis pela manutenção da ferrovia, que permaneceu ativa entre 1856 e 1946, ou seja,  nos noventa anos da concessão aos ingleses para operar a linha férrea que ligava Jundiaí à Santos. Conforme ditava o Decreto nº 1.759, de 26 de Abril de 1856  só era permitido morar na vila quem trabalhasse na estrada de ferro. E assim foi até 1946, quando a concessão encerrou-se.

Paranapiacaba foi a primeira vila ferroviária de São Paulo e é única no Brasil, pois não serviu de modelo para as demais vilas, que surgiram posteriormente em todo o Estado com outras companhias de estradas de ferro.

O origem da vila está ligada justamente à construção desta primeira ferrovia do Estado de SP, financiada pelo Visconde de Mauá (à época, ainda “barão”) a inglesa São Paulo Railway. Sua finalidade era transportar  sacas de café de Jundiaí ao Porto de Santos. Como a construção pelas escarpas da serra era muito muito complexa, demandou muita mão-de-obra, sendo necessário construir acampamentos próximos às obras para abrigo dos trabalhadores. O local escolhido pela empresa para a primeira instalação foi um vale cincundado por morros que recebeu o nome de “Alto da Serra”, por volta de 1861. Devido sua localização, na borda do planalto e  colado às escarpas da Serra do Mar, a região é frequentemente envolta em neblina até hoje.

Idealizado como um acampamento temporário, quando a ferrovia foi colocada em funcionamento, percebeu-se que a manutenção do maquinário do sistema funicular demandava bastante mão-de-obra, o que acabou determinando a permanência de boa parte dos operários, com a construção de uma vila para abrigá-los.

A organização de Paranapiacaba pode ser dividida em três partes: Vila Velha, Parte Alta e Vila Nova (ou Vila Martin Smith) construídas em duas fases: de  1860-1899 com a construção do primeiro sistema funicular; e 1900-1946, com a duplicação da linha férrea e operação até o fim da concessão.

Na fase inaugural, para vencer os 800m de desnível entre o Alto da Serra e a Baixada Santista, adotou-se um sistema de quatro planos inclinados interligados por patamares, onde foram instaladas maquinas fixas que acionavam os cabos de aço que sustentavam a locomotiva e as composições de trens em operação. Nesta fase, ocorreram a ocupação da parte alta com o acampamento e a construção da Vila Velha.

Na segunda fase, além da duplicação do sistema, construiu-se a estação ferroviária, os armazéns, o mercado, o clube recreativo, a escola, o depósito de locomotivas e a Vila Nova (Vila Martin Smith). O projeto foi feito na Inglaterra e conta com passeios, ruas principais e secundárias, além das famosas vielas sanitárias, a fim de facilitar manutenção e higiene, já que os banheiros eram externos às casas.

A maioria das casas foi construída em pinho de riga, árvore européia castanho-escura atualmente em processo de extinção, muito utilizada pela beleza e alta durabilidade, além da diversidade de padrões que apresenta. As casas eram também recuadas em relação à rua para formação de jardins,  o que remonta a Inglaterra vitoriana, quando a classe média em ascensão  começou a deixar os centros urbanos poluídos e degradados para viver um “meio termo” entre o interior e a cidade.

industrialização que deu origem a essa classe média burguesa, mudou o estilo de vida naquela parte do mundo e também deu a Paranapiacaba um raro sopro de modernidade. Com o passar dos anos, Os ingleses viram sua classe média crescer e aumentar gradualmente a sua influência na cultura e no estilo de vida e valores morais da sociedade, sendo a casa o fator mais interessante. Até então, tanto nas vilas como nas cidades, a moradia que era era adjacente ao local de trabalho e ocupava o mesmo espaço, passou a separar-se ao mesmo tempo em que a vida privada e a vida profissional também se distinguiram. O mundo via surgir um novo conceito de privacidade (e com ela, o moralismo).

Na São Paulo do século XIX, apenas chácaras, ou seja, as residências semi-urbanas – que à época chamavam-se mais comumente de “sítios” –  tinham jardins, hortas ou pomares. Na cidade, a casa era geralmente térrea, de porta e janela, com sala, alcovas e varanda, ou o sobrado, de dois, três, quatro pavimentos, com loja, armazém ou depósito no térreo, escritório, salas, alcovas e cozinha nos andares superiores. Sempre erguidas no alinhamento, sem recuo frontal ou lateral, a conformar ruas estreitas e tortuosas. E isso decorria de lei.

Assim, as casas urbanas ajardinadas e distantes do movimento da rua eram uma grande novidade que escapava às regulamentações públicas, eis que a vila era um empreendimento particular.  Mas a novidade não se limitou aos jardins.

No livro A arqueologia da São Paulo Oitocentista: Paranapiacaba, a arqueóloga Cláudia Regina Plens, descreve a estrutura da vila e a vida cotidiana de seus habitantes, evocando as ideias do filósofo francês Michel Foucault para explicar que os ingleses implantaram em Paranapiacaba um modelo ordenado e sistemático de sociedade. Explica que no centro da vila, no alto do morro, ficava a casa do engenheiro-chefe (atualmente o museu do “Castelinho”) de onde ele podia vigiar o trabalho dos operários num sistema conhecido por panóptico, descrito pelo autor na obra Vigiar e Punir.  O cotidiano de Paranapiacaba era extremamente rígido, não apenas quanto ao trabalho, mas também em relação ao lazer. Havia toque de recolher diário, os costumes também era regrados , bem como as residências tinham tipologias padronizadas e hierarquizadas de acordo com o cargo e a função dentro da ferrovia, evidenciando quem podia mais e quem podia menos.

Dentre as ruínas de muitos outros imóveis que seguiam essa tipologia, todos os imóveis aqui citados ainda estão de pé, alguns restaurados, outros originais e ainda alguns levemente modificados. Tudo a céu aberto, podendo ser visitado gratuitamente ou à preços módicos.

Muitos dos imóveis abrigam hoje centros culturais, como a sede da Associação Brasileira de Bruxaria , museus como o do Castelo, e o do Funicular,  restaurantes consagrados como o famoso Bar da Zilda, e o Estação Cavern Club Restaurant & Wine Bar, além de charmosos cafés como o Infinito Olhar e o Raízes da Serra . Recentemente foram instalados o restaurante vegano Sebastiana, além de hamburgueria, chopperia e cachaçaria.

O Caminho do Sal

A inauguração da estação ferroviária do Campo Grande, em 1889, criou as condições necessárias para o extrativismo de madeira que alimentava os fornos das olarias dos núcleos coloniais de Ribeirão Pires e de São
Caetano do Sul; e também contribuía com a produção de carvão que atendia às demandas do acelerado crescimento da capital paulista e de Santos. A estação de trem do Campo Grande, nas proximidades da Vila, que no projeto da estrada de ferro tinha por objetivo apenas ser uma parada intermediária para o abastecimento de água para as locomotivas, vai, gradativamente, assumindo a função de escoar a produção de lenha e carvão.

Toda essa área devastada, no passado, está hoje em franco processo de regeneração e sua história foi resgatada por meio do chamado “Trecho dos Carvoeiros”, em aproximadamente 10km de extensão, parte do chamado “Caminho do Sal” – uma rota ecoturística que conecta São Bernardo, Santo André e Mogi das Cruzes, da qual Paranapiacaba é parada obrigatória.

O percurso, composto principalmente por estradas de terra e cascalho, hoje é indicado para a prática de Mountain Bike (MTB), cicloturismo, caminhadas de longa distância, corrida de montanha e cavalgada. Há trechos com diversos graus de dificuldade que atendem do esportista mais experiente ao iniciante.

A rota tem também outros dois trechos: Zanzalá (15km) e Bento Ponteiro (25km). Estes trechos resgatam a história dos primeiros caminhos do Planalto Paulista originados no período da colonização pela coroa portuguesa, ainda no século XVII. Por ali, tropeiros transportavam sal para abastecimento da região, daí a escolha do nome para a rota, além de servir também para o transporte clandestino de pedras preciosas, o que motivou seu bloqueio, na época, pelo rei.

Hoje em dia, nada de bloqueio! Baixe aqui Guia de Ecoturismo do Caminho do Sal contendo mapas das trilhas, distâncias, atrativos, histórico e todas as informações que você precisa para usufruir do roteiro com segurança.

Terra do Cambuci

O Cambuci é uma fruta bem brasileira, cuja ocorrência em terras paulistas chegou a ser tão grande, que a cidade de São Paulo chegou a dar seu nome a um bairro. Hoje é uma espécie quase em extinção, mas vem sendo resgatada pelos paulistas como tempero, acompanhamento, sobremesa, bebida e até prato principal.

O cambucizeiro faz ocorre na Serra do Mar e hoje está no quintal de diversos produtores artesanais de Santo André, especialmente na região de Paranapiacaba.  Floresce durante os meses de agosto a novembro e seus frutos amadurecem nos meses de janeiro a março. Em abril, a Festa do Cambuci de Paranapiacaba é um evento que vem atraindo cada vez mais apreciadores e só perde em público para o famoso Festival de Inverno.

É uma frutinha verde,  de polpa carnuda e sabor doce-acidulado. As frutas de Cambuci têm um perfume intenso, adocicado, mas de sabor ácido como o limão, amarrando um pouco a boca, como ocorre com o cajú. O formato lembra um disco voador ou um pote de água dos índios. Acredita-se, inclusive, que o nome “cambuci” vem da palavra tupi-guarani para pote de água. Faz muito bem à saude, pois possui substanciosa quantidade de taninos, tal qual a goiaba e a uva, além de vitamina A, complexo B e ferro.

A presença de Cambuci em uma floresta indica que a natureza está bem conservada. Em Paranapiacaba encontramos facilmente o Cambuci na mata e o fruto que era utilizado na culinária pelos moradores locais, passou a ser explorado como mais um produto turístico. Os moradores de Paranapiacaba utilizam o Cambuci para elaborar deliciosas receitas como geléias, sorvetes, sucos, licores, cachaças, mousse, sorvete, bolo, além do tradicional suco. É apreciada também ao natural, mesmo sendo ácida.

Não perca a costelinha suína ao molho de cambuci, o prato campeão de audiência do Estação Cavern Club Restaurante & Wine Bar. O restaurante tocado pela chef Zélia Paralego já ganhou inúmeros prêmios em diversos festivais com esse prato delicioso e bem brasileiro.

Gostou?

Espero com esse singelo apanhado de curiosidades históricas, naturais e culturais, ter convencido o leitor em fazer uma visita a este patrimônio brasileiro tão importante, mas ainda não muito conhecido.

Em breve, post completo com roteiros à pé, dicas de restaurantes, trilhas e hospedagem.

Fontes:

ARAGÃO, Solange de. A casa, o jardim e a rua no Brasil do século XIX . Em Tempo de Histórias – Publicação do Programa de Pós-Graduação em História PPG-HIS/UnB, n.12, Brasília, 2008. Disponível em : file:///C:/Users/rdala/Downloads/34616.pdf . Acesso em 12/10/2021.

ARANTES, José Tadeu (2017). Paranapiacaba: vila operária em tempo de escravidão. Agência FAPESP. Disponível em: https://agencia.fapesp.br/paranapiacaba-vila-operaria-em-tempo-de-escravidao/25152/>. Acesso em: 11/10/2021.

CRUZ, Thais de Fátima Santos (2007). Paranapiacaba: a Arquitetura e o Urbanismo de uma Vila Ferroviária. São Carlos, Dissertação de Mestrado. Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Carlos. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/18/18142/tde-10122007-090438/publico/Thais.pdf . Acesso em : 11/10/2021.

PLENS, Cláudia Regina. A arqueologia da São Paulo oitocentista: Paranapiacaba. 1ª Edição, Annablume, 2016.

 

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