Eu sei que estou devendo zilhões de posts para o blog, mas com toda essa materialidade com que a vida paulistana me envolve neste momento, confesso que está difícil me concentrar no assunto ´viagem´, seja qual for a acepção. Não vai me redimir, mas entre um post e outro no Um Pouco de Tudo, mais precisamente numa série sobre o novo filme do Walter Salles, acabei me lembrando de um dos filmes mais queridos que tenho na estante: Diários de Motocicleta, nosso Easy Rider latino.
Sem condições de rever o filme nesta tarde desesperadoramente curta de domingo, vou copiar aqui um trechinho de um dos livros que o inspiraram. Boa viagem.
“De Moto pela América do Sul – Diário de Viagem”
Trecho 1 – Prefácio
“Esclarecendo as Coisas…
Este não é um conto de aventuras nem tampouco alguma espécie de “relato cínico”; pelo menos, não foi escrito para ser assim. É apenas um pedaço de duas vidas que correram paralelas por algum tempo, com aspirações em comum e com sonhos parecidos. Durante o transcorrer de nove meses, um homem pode pensar em muitas coisas, desde o mais alto conceito filosófico até o desejo mais abjeto por um prato de sopa – tudo de acordo com o estado de seu estômago. E se, ao mesmo tempo, esse homem for do tipo aventureiro, ele poderá viver experiências que talvez interessem às demais pessoas e seu relato casual se parecerá com este diário.
Assim, a moeda foi lançada e girou no ar; às vezes apareciam caras, às vezes coroas. O homem, que é a medida de todas as coisas, fala através de mim e reconta por minhas palavras o que meus olhos viram. De dez caras possíveis, eu talvez só tenha visto uma única coroa, ou vice-versa: não há desculpa; minha boca fala o que meus olhos lhe disseram para falar. Teria nossa visão sido estreita demais, preconceituosa demais ou apressada demais? Teriam nossas conclusões sido muito rígidas? Talvez, mas é assim que a máquina de escrever interpreta os impulsos desbaratados que me fizeram pressionar as teclas, e esses impulsos fugazes já estão mortos. Além disso, ninguém pode responder por eles.A pessoa que tomou estas notas morreu no dia em que pisou novamente o solo argentino. A pessoa que está agora reorganizando e polindo estas mesmas notas, eu, não sou mais eu, pelo menos não sou o mesmo que era antes. Esse vagar sem rumo pelos caminhos de nossa Maiúscula América me transformou mais do que me dei conta.
Qualquer manual de técnicas de fotografia pode mostrar uma paisagem noturna com a lua brilhando no céu e um teto ao lado que revele os segredos dessa escuridão iluminada, Mas o leitor deste livro não sabe que espécie de fluido sensitivo recobre minha retina, eu próprio não o sei com certeza, então não é possível examinar os negativos para encontrar o exato momento em que minhas fotos foram tiradas. Se eu mostrar uma foto noturna, você, leitor, é obrigado a aceitá-la ou recusá-la por inteiro, não importa o que pense. A menos que você conheça as paisagens que eu fotografei em meu diário, será obrigado a aceitar minha versão delas. Agora, eu o deixo em companhia de mim, ou do homem que eu era…”
Trecho 2 (págs. 45 a 47)
“Os Especialistas
A hospitalidade chilena, como eu não me canso de repetir, é uma das coisas que tornou a viagem através do nosso vizinho tão agradável.E nos divertimos muito, como só nós podemos saber. Eu acordei preguiçosamente sob os lençóis, refletindo sobre o valor de uma boa cama e calculando a quantidade de calorias do jantar da noite anterior. Relembrei os acontecimentos recentes: o furo traiçoeiro no pneu de La Poderosa, que nos deixou empacados na estrada, debaixo da chuva; a ajuda generosa de Raúl, dono da cama na qual nós dormíamos agora; e a entrevista que concedemos a El Austral, em Temuco. Raúl era um estudante de veterinária, aparentemente não muito sério, e dono do caminhão onde nós metemos nossa pobre moto para chegar a esta cidadezinha pacata no meio do Chile. A bem da verdade, nosso amigo pode, em algum momento, ter desejado jamais ter nos conhecido, já que nós lhe presenteamos com uma noite maldormida, mas foi ele quem cavou sua própria cova, ao se vangloriar do dinheiro que gastava com as mulheres e ao nos convidar para uma noitada em um “cabaré”; isso levou a uma longa discussão, que durou horas e que foi a causa de nossa estada na terra de Pablo Neruda ter sido prolongada. Ao fim da discussão, é claro, veio o problema inescapável de que nós teríamos de adiar nossa visita àquela casa de espetáculos tão atraente, mas, para compensar, conseguimos hospedagem e alimentação grátis. À uma da manhã, lá estávamos nós, tranqüilos como se pode imaginar, devorando tudo o que havia na mesa, o que não era pouco, e mais um tanto que chegou depois. Em seguida, nos apropriamos da cama de nosso hospedeiro, já que seu pai estava se mudando para Santiago e não havia quase nenhum móvel na casa.
Alberto, ainda morto para o mundo, desafiava o sol da manhã a penetrar seu sono pesado quando eu comecei a me vestir. Essa tarefa não era assim tão difícil, já que a diferença entre nossos trajes diurno e noturno era basicamente o sapato. O jornal local tinha um número considerável de páginas, tão diferente dos nossos pobre diários, mas eu estava interessado somente em um pequeno pedaço das notícias locais, o qual eu encontrei com letras grandes na seção dois: DOIS ARGENTINOS ESPECIALISTAS EM LEPROLOGIA VIAJAM PELA AMÉRICA DO SUL DE MOTOCICLETA. E mais abaixo, em letras menores: “Eles estão em Temuco e querem visitar Rapa Nui”.
Em poucas palavras, era assim que nossa ousadia era descrita: nós, especialistas, figuras-chave do campo da leprologia nas Américas, com uma vasta experiência, já tendo curado mais de três mil pacientes, familiarizados com todos os centros importantes do continente e com suas condições sanitárias, tínhamos nos dignado a visitar esta cidadezinha pitoresca e melancólica. Nós imaginamos que eles iriam apreciar bastante nosso respeito pela cidade, mas não sabíamos com certeza. Logo, toda a família estava reunida ao redor do artigo e todos os outros itens do jornal eram tratados com um desprezo olímpico. E assim, deleitados com a admiração de nossos anfitriões, demos adeus a essas pessoas de quem hoje não lembramos nada, nem mesmo os nomes. Tínhamos pedido permissão para deixar a moto na garagem de um homem que morava na saída da cidade e nos dirigimos para lá. Só que, agora, não éramos mais um par de quase-mendigos com uma moto a reboque, Não, agora nós éramos “os especialistas”, e era assim que nos tratavam. Passamos o dia consertando a moto, e m a empregada mestiça vinha sempre nos oferecer os mais variados petiscos. Às cinco da tarde, depois de um lanche suntuoso oferecido por nosso anfitrião, nos despedimos de Temuco e seguimos para o norte.”
Se você curtiu, parta para o próximo post: La Poderosa 2 – “Diários de Motocicleta” na Web.