Conheça a Serra da Capivara – PI

Serra da Capivara
A capital da pré-história brasileira

Durante muito tempo, acreditou-se que a colonização da América havia se dado por volta de 12 mil anos atrás, quando  grupos de seres humanos atingiram o continente vindos da Ásia, atravessando o Estreito de Bering, de onde foram se espalhando pelo continente através dos séculos. Pesquisas recentes, entretanto, apontam ser pouco provável que isso tenha acontecido nessa época, eis que aquele corredor não possuía vida vegetal ou animal, ou seja, humanos que tentassem usar a passagem não teriam comida e outros recursos vitais para sobreviver à viagem.

Hoje, acredita-se que o atual território brasileiro foi povoado por homens muito tempo antes, entre 40 mil e 50 mil anos atrás. Segundo essas teorias mais recentes, especialmente as que envolvem pesquisas genéticas, identificaram-se traços de DNA de uma população relacionada aos atuais aborígenes australianos e nativos da Nova Guiné, entre o Sudeste Asiático e a Oceania, na formação de populações tradicionais brasileiras importantes, como os suruí, os karitiana e os xavante.

Dentre os países da América do Sul, o Brasil contribui com evidências muito significativas destas teorias para os estudos arqueológicos mais modernos, especialmente pelos estudos realizados nos estados de Minas Gerais e do Piauí. Neste último, foram descobertos por meio de estudos e pesquisas lideradas pela arqueóloga Niéde Guidon, ossos de animais pré-históricos, fragmentos de cerâmica, machados de pedra, fogueiras e o maior conjunto de pinturas rupestres a céu aberto do planeta, atualmente protegidos pelo Parque Nacional da Serra da Capivara.

O  PNSC foi criado em 05/06/1979 com o objetivo de preservar esse que é o maior conjunto de sítios pré-históricos do Brasil, possibilitando trabalhos científicos inéditos, com uma importância tão grande para a história da humanidade, que foi decisivo para alterar teorias que há muito tempo se acreditava estarem corretas. O  PNSC já nasceu especial, eis que foi a primeira reserva federal a preservar a caatinga (do tupi, “mata branca”) bioma riquíssimo em biodiversidade e exclusivo do território brasileiro, mas seu grande momento ocorreu mesmo em 1991, quando foi declarado Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO, graças aos milhares de sítios arqueológicos contendo pinturas e gravuras pré-históricas que contam detalhes da vida das antigas sociedades que ocuparam a região durante muitos milênios.
Fascinantes e ao mesmo tempo misteriosas, as pinturas estão emolduradas por uma área imensa de vegetação de caatinga, com suas belas floradas da época das chuvas  e grande diversidade animal, sendo avistados em boa parte do ano várias espécies de tatus, tamanduás, jaguaratiricas, jacus, cotias, veados-catingueiros, porcos-do mato, macacos-prego, onças, aves diversas, lagartos e serpentes, convivendo de forma natural e protegida, em meio a singulares formações de arenito, cânions e boqueirões, formando inesquecíveis vistas panorâmicas.  O parque atualmente está distribuído pelos municípios de Canto do Buriti, Coronel José Dias, São João do Piauí e São Raimundo Nonato, com 1.354 sítios arqueológicos catalogados, sendo 183 preparados e disponíveis para a visitação turística. É a maior concentração de vestígios ancestrais do mundo. A maior e mais completa vitrine para o nosso passado!
Historiador, biólogo, fotógrafo, trekker, biker, caver, rapeleiro, montanhista, estudioso ou apenas curioso, a Serra da Capivara interessa a todos por beleza das paisagens, sua importância histórica singular e ampla diversidade de atividades que podem ser praticadas nos 135.000 hectares do Parque e suas adjacências.
Pouco acessível, o Parque Nacional fica localizado em São Raimundo Nonato-PI, cidade que se alcança por não menos que cinco horas de viagem a partir de Petrolina-PE , a maior parte em estradas de terra, ou sete horas via Teresina-PI, com asfalto em bom estado (2018). Isolada, SRM tem cerca de 30 mil habitantes e vive de agricultura e pecuária, estando longe de ter uma estrutura hoteleira de qualidade, mas seu povo é acolhedor, possui uma forte cultura artesanal e graças aos esforços de estudiosos interessados na preservação desse grande tesouro nacional, também muito orgulhosa e participativa nas questões relacionadas à vida do Parque. Prato cheio para um turismo de base comunitária, ingrediente ideal para o mochileiro corajoso e ávido pelo diferente.
Mas vale a pena. As pinturas são incríveis, retratam fatos da vida pré-histórica, com claras cenas de lutas, caças, animais, sexo, partos, crianças e algumas ainda não desvendadas, cujo significado reside onde a imaginação alcança.  Além de um bom guia, disposição para caminhar e um aguçado senso de curiosidade, é fundamental visitar a Fundação Museu do Homem Americano (Fundham). Inaugurado em 1986, o moderno museu abriga um acervo vastíssimo de achados arqueológicos da pré-história americana: esqueletos de seres humanos, fósseis de animais da megafauna, líticos (artefatos de pedra lascada), urnas funerárias e respectivas múmias, utensílios domésticos de cerâmica, todos cuidadosamente coletados, catalogados e estudados nessas mais de quatro décadas de estudos em toda a região. Há artefatos datados de 59.000 a 5.000 anos atrás, confirmados com as técnicas mais atuais pelos melhores laboratórios de arqueologia da Europa e dos Estados Unidos.
Estive por lá em 2016, numa jornada inesquecível que começou em Petrolina-PE, atravessou o sertão rumo ao coração do Piauí, passou pela Serra da Capivara e terminou na Serra das Confusões, um pouco mais à oeste.  Rasgar o sertão do coração do Brasil me emocionou muito, por diversos aspectos.
O sertão é árido, duro, belo e desafiador. As estradas são ruins, a pobreza é escancarada, a falta d´água uma realidade, os corpos secos de bodes e cavalos nos acostamentos e as crianças pedindo dinheiro em postos de gasolina são lembretes de que nada é fácil no Brasil de verdade, longe dos grandes centros urbanos do sul. Encontrar uma cachoeira em meio à caatinga depois de um dia inteiro procurando, dar de cara com um veado campeiro no meio da trilha, passar horas admirando a paisagem e torrar os miolos estudando enigmas de 10, 20 mil anos atrás… debaixo de um sol de 40 graus. Tudo é intenso nessa viagem pelos sertões do Piauí, mas tudo vale a pena quando se chega ao destino e está tudo lá, exatamente como te contaram. Exatamente como você viu na internet.
Além do prazer da experiência, conhecer o Parque Nacional da Serra da Capivara também é uma ação afirmativa, pois apoiando o museu e divulgando o belíssimo trabalho que nossos pesquisadores realizam por lá, apesar de toda a dificuldade que enfrentam, o visitante ajuda na preservação, aquece a economia local e torna-se um multiplicador da grande bagagem inevitavelmente adquirida numa jornada épica como esta.
Tive a sorte de contratar o guia certo. Tive a paciência de planejar bem o roteiro. Tive o prazer de aprender muito.  Tive a sensação de que um dia quero voltar e fazer tudo de novo!
Espero sinceramente que o guia de viagem a seguir inspire outros aventureiros a desbravar o sertão de nosso país e aprender sobre nosso passado, questionar nosso futuro e viver intensamente nosso presente.

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8 comentários em “Conheça a Serra da Capivara – PI”

  1. Publicações recentes de arqueólogos brasileiros e franceses sobre ferramentas com idade estimada de até 24 mil anos encontradas na Serra da Capivara:
    Journal of Archeological Science : https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0305440313000733
    Antiquity :
    https://www.cambridge.org/core/journals/antiquity/article/new-late-pleistocene-archaeological-sequence-in-south-america-the-vale-da-pedra-furada-piaui-brazil/5D3D45742107D7E0E6AF1FB2C24B727F

    1. Grato pelo link, pela visita e pelo comentário. Infelizmente as notícias não são boas para o parque, pois apesar da iminente inauguração do novo museu, essa semana soubemos que o ICMBIO fez um corte severo de verbas para a FUNDHAM que corre o risco de não mais existir. Mais uma vergonha para o país que deixa seus museus pegarem fogo e ignora seu patrimônio natural. Mas a cultura resistirá. Nós resistiremos.

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