Relato completo com tudo que você precisa saber para uma das travessias mais cênicas da América do Sul
– Amigo, acha que vale a pena ver o Cementerio de Trenes? Ou vou direto a Uyuni?
– Se vale a pena ver o Cementerio? Claro que vale, mas não sei se vale ir ATÉ LÁ pra ver!
Claro que vale.
Parafraseando Paul Theroux , “a jornada é o mais interessante de tudo”.
O fato é que aquele senhor troncudo, com as marcas do tempo esculpindo-lhe o rosto, não poderia imaginar que a imensidão daquele lugar e sua natureza tão imponente causam um sentimento tão forte e ambíguo no mochileiro, que ele se sente pequeno ante sua força, mas extremamente privilegiado por vencê-lo na jornada. Para aquele homem era só um ponto no mapa, para mim era a forma mais completa de liberdade.
Ali mesmo me despedi do breve amigo, na porta do saguão do aeroporto de Calama. Entrei na van para nunca mais vê-lo, ao mesmo tempo em que me despedia de mim mesmo. De um “eu” que não existiria mais da mesma maneira.
Mas vamos ao que interessa.
Há muitas formas de conhecer o famoso Salar e certamente a mais interessante é fazendo a travessia que sai do Chile, em San Pedro do Atacama, e vai até a cidade boliviana de Uyuni, por quatro longos, cansativos e incrivelmente proveitosos dias.
A seguir, um pouco do que vi e vivi por ali. Espero que gostem, torço para que seja útil.
A Agência
Apesar da ampla pesquisa que fiz antes de sair de casa, só decidi qual agência contrataria quando cheguei ao Atacama. Queria ouvir algumas impressões pessoais, pesquisar mais e sobretudo pedir dicas a alguém que fosse experiente, mas que não tivesse nada a ganhar. Depois de muito perguntar e bisbilhotar, optei pela Expediciones Estrella Del Sur.
Você lerá muito a respeito da importância de escolher uma boa agência e há uma série de dicas batidíssimas a respeito no farto material que a internet provê sobre o assunto, então vou resumir apenas o que acho verdadeiramente relevante: escolha uma agência que também tenha escritório em Uyuni. Fala-se muito sobre carros muito velhos (verdade) que quebram bastante (verdade), motoristas ruins (verdade) e até motoristas bêbados (deve ser verdade) além de tudo que pode acontecer a você se acabar se perdendo por algum motivo e for obrigado a passar a noite no gélido Salar de Uyuni sem equipamento adequado (uma dolorosa verdade). Entretanto, é fato que a esses riscos, todo viajante que se proponha a atravessar o Salar está sujeito. Problemas são raros, mas acontecem. E a internet está cheia de relatos deles.
Tenha em mente que apesar do que te disserem, não há telefones via satélite, os carros não têm GPS, os motoristas não fazem curso algum e os carros não são revisados periodicamente. O que ocorre é que a agência que você escolher em San Pedro não é nem mesmo a agência que vai te levar na viagem. O ônibus da agência vai te deixar na fronteira e te apresentar para o seu motorista e respectivo veículo, que pertence a outra agência na Bolívia (ou é até mesmo um freelancer, pago por viagem) então pouco importa qual agência você vai escolher em San Pedro, a única exigência é que ela seja tradicional e exista na outra ponta do teu itinerário para que no caso de ocorrer algum imprevisto, você não fique na mão. Desert, Incanorth, Cordillera e Colque Tours – as quatro maiores agências de San Pedro, são uma opção segura. Alternativamente, você pode optar pela Estrella Del Sur – que é fraquinha nas atrações do Atacama, mas tem escritório nas duas cidades e bastante tradição na travessia do Uyuni. Acabei optando por esta última e fechei o tour por US$140, preço na média, que inclui transporte, alimentação completa e acomodações.
Veja: a não ser que seu orçamento esteja realmente apertado, não vale a pena pegar uma agência econômica, que cobre valores substancialmente mais baixos. E isso não tem nada a ver com o veículo que vai te transportar pelo deserto de sal, pois eles são todos bem parecidos. Tem a ver apenas com a qualidade da hospedagem que você utilizará no deserto e o aumento do risco de atraso. A questão é que se o ônibus que te leva à fronteira quebrar ou atrasar demais, você pode perder a saída dos carros na Bolívia e consequentemente a manhã toda, pois os trâmites de aduana boliviana são bem chatos e os carros partem todos no mesmo horário. Da mesma forma, se você pretende voltar a San Pedro, é melhor se cercar de garantias de que aparecerá alguém para te pegar em Uyuni. São contratempos que podem “matar” uma viagem com tempo mais apertado.
Quanto à hospedagem, varia bastante. Há certa diversidade de tour econômicos, com pousos em lugares diferentes, com variações de roteiros que se adequam conforme a época do ano, as condições climáticas e os humores das autoridades locais. Alguma pesquisa nos relatos de blogs por aí já mostra quatro ou cinco rotas diferentes ao longo dos últimos cinco anos. Informar-se previamente quanto ao roteiro em San Pedro não ajuda em nada: quem decide por onde se vai passar é a agência na Bolívia. Prepare-se.
O certo é que a única hospedagem decente é a do Hotel de Sal, que rolou pra mim no segundo dia de travessia. As hospedagens do primeiro e do terceiro dias beiram o improviso e são muito, muito precárias. Prepare-se para banheiros com água congelante, vazamentos diversos, mal cheiro, vento entrando por buracos na parede, colchões empoeirados e muito, muito frio, sobretudo no inverno. Em geral não é nada que vai matá-lo, são poucos dias, mas é necessário estar preparado para condições severas em caso de mau tempo e eventuais problemas com as más condições sanitárias, principalmente se você tiver um organismo sensível.
Ainda quanto aos preparativos, optei por seguir os conselhos de quem já havia ido: na noite anterior troquei uma parte dos pesos chilenos por bolivianos (você vai precisar de 250Bs para para usar em Uyuni e fazer os pagamentos de entrada dos parques, que não aceitam moeda estrangeira); comprei três garrafas de 1,5l de água para beber e tirar o sal do corpo; me abasteci de chocolates meio-amargos, maçãs e biscoitos (a comida servida é boa, mas não é farta); deixei a cargueira num locker do hostel e montei uma mochila de ataque para levar comigo na travessia.
Primeiro Dia
Lembro-me como se fosse hoje da sensação que tive ao deitar na cama no Campo Base na noite anterior. A essência de uma viagem assim é inesperada e incomum e isso fazia meu sangue flamejar. Minha mente girava e eu não conseguia me acalmar, tamanha a ansiedade pela jornada . Mesmo assim, insisti e o cansaço venceu a ansiedade: cinco ou seis horas de sono depois, acordei bem disposto e animado, pouco antes das sete. Com tempo suficiente para largar a mocha no locker que me haviam gentilmente franqueado, tomei café com calma e caminhei sorridente até a sede da agência. De lá, um simpático ônibus me levou com cerca de quarenta convivas até a fronteira com a Bolívia.
Passado o controle chileno, o que esperar da fronteira com a Bolívia, ali bem no meio do deserto? Uma apertada cabana em L, mal rebocada, com janelas de vidros fixos, através dos quais pouco se podia ver e uma bela bandeira nacional tremulando no topo. Do lado de fora uma considerável fila de mochileiros aguardava, esfregando as mãos, ajeitando gorros e fechando zíperes. O frio era intenso e o vento cruel, mas a espera era inevitavelmente desabrigada. Logo o ônibus nos cuspiu no clima boliviano e rapidamente fomos informados para entrar na fila, carimbar o passaporte e aguardar. O último contato chileno se deu no bem-vindo café da manhã oferecido num banquinho retrátil, composto de chá de manzanilla com bolachinhas, chocolate frio e bananas. Ainda mastigando, agradeci meio sem jeito o sorriso do oficial de imigração boliviano que soltou um brasileños siempre bienvenidos. A seu lado, uma foto alegre de Evo Morales dava boas-vindas aos incautos mochileiros.
Na saída da cabana, alguns Toyotas Landcruiser 4×4 dos anos 90 estavam enfileirados e os viajeros foram divididos em grupos de cinco a seis pessoas pelos motoristas. Aqui mais um lance de dados define a sorte do mochileiro: um Toyota com o para-brisa trincado, um motorista sisudo chamado José e um grupo de cinco mochileiros formado por um inglês, uma indiana naturalizada escocesa e dois australianos, que não falavam uma palavra em espanhol. José já foi logo avisando que tudo que fôssemos precisar até às 18h daquele dia deveria ficar numa mochila menor, dentro do carro e que não haveria excessões. A travessia seria dura, o toyota chacoalharia bastante e as cargueiras ficariam enroladas em lonas e amarradas no teto, do lado de fora. Traduzi suas palavras para o inglês aos meus convivas e partimos depois de cinco apressados minutos organizando nossos percentes. Duas horas de música típica boliviana depois, algumas parcas informações limitadas ao nome dos lugares e avisos sobre o clima, três grandes possas (lagoas?) de água salgada atravessadas com habilidade pelo motorista, chegamos à belíssima Laguna Verde, onde ficamos até o fim da manhã.
A primeira atração do Salar já dá o tom do viagem: incredulidade. Uma bela porção de água emoldurada numa camada de sal esbranquiçada, que muda de cor conforme a direção do vento. É quando José rasga a catarse da galera explicando é a presença de magnésio, carbonato de cálcio e arsénico que dá à lagoa sua cor de jade neon, enquando pede que caminhemos despacito à sua volta, por conta dos 4.400 metros de altitude.
Como se não fosse suficiente, o vizinho Licancábur e seus 5.800 metros nos vigiava como um sentinela. Não há preço que pague a beleza do lugar, que manteve o nível na seguinte Laguna Blanca. Águas calmas, horizonte trêmulo e umas vastidão aterradora formam aquela solitária porção de terra do deserto, vez por outra invadida por revoadas de pássaros singularmente coloridos.
Sentado ao lado de José, no banco dianteiro do passageiro, tentei puxar conversa por alguns minutos, mas logo vi que ao contrário dos chilenos, que falam em rajadas, este boliviano era fechado e suas parcas palavras fluíam com um humor seco e formal. Notei que com o passar das horas ele amolecia vagarosamente, mas permanecia muito atento à estrada e ao painel de instrumentos do jipe. Vencidos o Deserto de Dali e termas de Chalviri, José nos preparou um surpreendente delicioso almoço de macarrão com salsichas, pão, sucos e legumes salteados. Meia hora depois, as montanhas alaranjadas e as pedras foram desparecendo e voltamos à paisagem vasta e brilhante do deserto.
Já no meio da tarde, encontramos pela primeira vez alguns jipes de turistas e seguimos em comboio por alguns minutos até a Aguas Termales de Chalviri onde um vento gelado rasgava a pele anunciando que o dia já passava da metade. Mesmo assim, sacabamos as roupas e entramos nas piscinas vulcânicas. A experiência me pegou de surpresa, mas felizmente tinha uma bermuda apropriada na mocha e me joguei. Obviamente, aquela leve e passageira sensação de arrependimento veio na hora de tirar o pescoço para fora da água e voltar à jornada, mas o que estava feito, estava feito. Daí pra frente a temperatura começou a cair vertiginosamente e quando passamos pelos Geyseres Sol de Mañana já tínhamos alguma ideia do que enfrentaríamos à noite. Antes de fechar o dia, faltava a famosa Laguna Colorada com suas nuvens de flamingos cor-de-rosa, quando José parou subitamente, balbuciando algo num espanhol ininteligível antes de bater a porta e verificar os pneus. Trocou o traseiro esquerdo em dez minutos, recusando ajuda e com a mesma habilidade com que tinha dirigido o dia todo. Um homem notável, aquele baixinho mal-humorado.
Fruto do acaso, chegamos um pouco mais tarde à Colorada do que o previsto, o que nos franqueou menos tempo de estada, mas uma luz mais interessante para fotografar. Desconfio que a toada mais apressada de José até nosso pouso também se refere ao imprevisto, mas de qualquer forma, alguma adrenalina é sempre bem-vinda num fim de tarde sul-americano. A luz do sol acabou num albergue distante pouco menos de duas horas da Laguna: uma habitação espartana, com grandes vidros emoldurando um grande corredor por onde se via com dificuldade as portas dos quartos e uma placa no topo da porta que dizia “Hostal Huaylla”. Lembrei, nesse momento, dos insistentes avisos do atendente da agência acerca da simplicidade da “hospedagem” e não vi ali nem mais, nem menos do que ele descreveu. Local muito simples, mas livre de poeira, sem chuveiro, com quartos compartilhados para cerca de 8 pessoas cada, com um banheiro que flertava com o nível “inutilizável”, águas geladas como navalhas nas torneiras e três grandes mesas no corredor onde são servidos um lanche da tarde e uma refeição quente antes de dormir, por volta das 21h. Saladinha de tomate com cebola, creme quente de carne com legumes, macarrão com molho vermelho e sucos variados abrandaram o frio, mas deixaram meu estômago arredio, provavelmente pela combinação com os mais de 4.500m de altitude. Na tentativa de dormir melhor, biquei uma tacinha de vinho chileno barato e arrisquei uns goles de Paceña, mas o sono demorou a vir.
Cobertores eficientes e a segunda pele de calça e camisa, entretanto, garantiram proteção integral contra os 10 graus negativos lá de fora e amenizaram meu mal estar quando acordei com uma leve tontura, por volta de quatro da manhã. Tomei um dramin, ouvi um pouco de música do que restava da bateria do celular e me desculpei mentalmente por apelar para a modernidade, mas ali, solitário e à beira de algo mais sério, achei que podia. Mas o tempo passa devagar no escuro. Com algum incômodo nas costas pelo colchão gasto e molengão, arrisquei levantar-me e acender uma lanterna, mas as janelas cobertas de gelo e o ruído do vento nas frestas do corredor me desanimaram. Estranhamente sentia um pouco de calor, o que me fez tirar a segunda pele das pernas e afastar um pouco o cobertor. Uma dor de cabeça leve mas constante me incomodava, alguma palpitação no coração, tudo efeito da altitude e do frio severo. Meditei um pouco, me situei ali no meio do deserto, fazendo uma viagem incrível com paisagens únicas e lembrei que era um privilegiado. Deitei, me acalmei e consegui cochilar por algum tempo, despertando com os socos de José na porta, avisando que o desayuno seria servido.
Segundo Dia
Antes das 7h já estávamos arrumados e tomando café. O chá de coca quente com pão, manteiga, geléia e frutas me revigorou mais rápido do que esperava e em 15 minutos já estava no Toyota, ansioso pelo que viria. A paisagem no caminho do Deserto de Sioli era belíssima, repleta de flamingos, pedras em formatos inusitados, montanhas serpenteando o horizonte e um vulcão fumacento à noroeste. Estava feliz, agitado e bem-humorado, apesar do crescente clima de apreensão que tomava conta de meus amigos. José não parava de olhar o painel de instrumentos, vez por outra diminuía a velocidade e botava a cabeça para fora procurando alguma coisa, depois voltada a dirigir normalmente e tornava a completar seu ritual misterioso, sem dizer uma palavra. Puxei papo, perguntei do carro e suas respostas saíram frias como uma sopa fria, apesar da animada música boliviana ao fundo. À cada frase, traduzia para o inglês para o pessoal do carro, mas eles não me devolviam a gentileza quando falavam muito rapidamente entre eles. Eu estava sozinho nessa.
Vencemos o Sioli, passamos pela Arbol de Piedra e admiramos as inacreditavelmente belas Lagunas Altiplanicas antes do almoço. José nos preparou um delicioso rango de arroz, queijo ,ovo frito, purê de batata, salada de pepino com tomate e belas bananas maduras de sobremesa. Demoramos um pouco para comer e todos os outros jipes já tinham ido embora enquanto José ainda limpava a louça e nós admirávamos a paisagem sentados na grama e fotografando as centenas de flamingos que brincavam sobre as águas.
Por volta das duas da tarde deixamos a lagoa e José recomeçou seu ritual, agora parando de um em um quilômetro, saindo do carro, abrindo o capô e verificando alguma coisa. E assim fomos atravessando o deserto, debaixo do céu azul iluminado por um sol pálido e um vento cada vez mais gelado.
Até que o carro parou. José saiu, abriu o capô e dessa vez demorou-se a verificar o motor. Não aguentei e saí. Ofereci para segurar manter a tampa aberta enquanto ele olhava o radiador. Puxou a mangueira para fora, soprou, cuspiu e tornou a colocá-la. Tirou a outra ponta, olhou dentro do radiador e foi aí que eu entendi: o reservatório de água estava repleto de sal.
Os jipes que cruzam o Salar tem uma proteção especial, debaixo do cárter, que mantém o motor a salvo do sal que voa dos pneus e penetra quando o carro atravessa poças mais fundas. Aparentemente, no nosso caso, não foi suficiente. José torceu o nariz, fechou o capô e me disse para entrar no carro, dizendo que íamos voltar. Voltar para onde, perguntei. Para a lagoa, felizmente, era só até a lagoa.
E lá estávamos nós, debaixo de um frio intenso que começava a piorar com o cair da tarde, de volta às belas Lagunas Altiplânicas. José parou o carro, abriu o capô, desceu um galão do teto do Toyota e pôs-se a caminhar para a lagoa, enquanto meus colegas olhavam atônitos. Preocupado, fiz menção em seguí-lo, mas ele logo retornou e começou a esgotar o reservatório. Depois de três viagens, o radiador estava mais limpo e tornou a funcionar.
Oferecemos usar um pouco de água mineral que tínhamos para lavar os pés e beber e José aceitou de pronto, completando o tanque e finalizando o serviço. De volta ao roteiro original, mais tranquilos, pudemos nos divertir com a tocada mais hard que José deu para alcançar as Lagunas Honda e Cañapa num horário razoável. Lá chegando, seus colegas de outros jipes já estavam manobrando para nos seguir, dado o adiantado da hora e nossa ausência repentina. Tudo certo, apreciamos a bela vista, tiramos fotos e seguimos viagem.
Ainda sem ar de tão bela que era a Honda, fiquei impressionado como Salar de Chiguana, com poças que ficavam douradas ao pôr-do-sol, emoldurando o horizonte cor-de-rosa com o Volcán Ollague ao fundo. Lhamas e Viscachas surgiam do nada e sumiam como miragem. Momentos únicos, mágicos.
Com o cair da noite, chegamos a uma grande e bonita construção branca: o hotel de sal Tambo Loma. Totalmente diferente do abrigo da noite anterior, o hotel tinha quartos bonitos e amplos, água morna nos chuveiros (luxo!), tomadas para carregar eletrônicos e um delicioso e farto jantar. Foi perfeito para dar uma relaxada, jogar conversa fora e ainda curtir um vinho com mochileiros de tudo quanto era lugar do planeta. Às 23h a energia foi desligada e fomos dormir, não sem antes dar uma chegada do lado de fora e sentir a temperatura abaixo de zero da qual ficaríamos bem abrigados naquela noite.
Inabaláveis, quatro motoristas trabalhavam ainda até aquela hora. Vulcanizavam “na unha” um pneu velho, usando apenas uma tira de borracha e um maçarico improvisado. Queria assistir o serviço até o fim (e verificar qual carro seria “equipado” com o distinto artefato) mas tanto o sono quanto o frio eram motivos mais fortes àquela altura.
Terceiro Dia
Dormi bem e acordei disposto, às 05h30, mais uma vez com o guia batendo à porta anunciando o café da manhã. Chás, café bolachas, pão com manteiga, bananas e até waffer com geléia de morango estavam servidos. Um bom presságio daquele que prometia ser o ponto alto da viagem: o amanhecer no Salar de Uyuni. Já tínhamos visto e vivido muito até ali, plenos de experiências e felizes pela oportunidade, mas era impossível controlar a ansiedade por conhecer o maior deserto de sal do mundo e suas tão famosas cores ao amanhecer .
O velho toyota desceu rasgando a estrada em zigue-zague que liga Villa Martin à porta do Salar. Em pouco tempo, quando os primeiros raios de sol derretiam o gelo do teto, já estávamos sob o solo branco, ouvindo o tilintar dos pedriscos de sal no cárter. As lendas eram verdadeiras: não há sensação igual no mundo. Em minutos, o sol invade o deserto de sal, as poças de água ficam avermelhadas, a imensidão abraça tudo que há e as pupilas se dilatam, tentando filmar aquela imensidão toda. A sensação ao ver o Salar pela primeira vez é a de que você foi o primeiro a chegar lá, tal a amplidão do horizonte, tal a singularidade da paisagem. Vasto, profundo, insólito, selvagem, mágico.
Ali todos viramos crianças. Batemos fotos em profundidade, brincamos com a perspectiva distorcida pela vastidão do lugar, exploramos a bela Ilha Hincahuasi seus cactos estranhos, lanchamos à beira do infinito, tudo como se fosse a primeira e a última vez. E provavelmente foi.
Ainda extasiados, horas depois, partimos para ver (de longe) as minas de sal e paramos rapidamente no Museu de Sal, cujo interesse é praticamente zero dada a emoção da jornada anterior. Ainda assim, conferimos tudo e voltamos ao carro para seguir mais algumas horas em direção a Uyuni. Já nos limites da cidade, ultimamos nosso tour num Cemitério de Trens abandonados, que também parecia, digamos, abandonado. Pouco tempo depois, José nos deixava na deserta avenida central de Uyuni, em frente a uma agência fechada. “Adeus aos que se vão e quanto aos que voltam ao Atacama, estejam aqui neste lugar às 16h.”. E se foi, apressado, com poucas palavras e nenhuma mesura.
Consultei o relógio e percebi que tinha duas horas até o horário combinado. Rapidamente meus companheiros se foram, também sem maiores cerimônias e quando dei por mim já estava sozinho, numa rua deserta de domingo, no coração da América do Sul. Foi quando já me levantava para explorar o pequeno centro, que chegou outro carro, desembarcando um simpático casal de franceses, que receberam as mesmas instruções que eu. Desconfiados, logo me perguntaram se eu também regressaria a San Pedro, ficando reconfortados ao descobrirem que sim. Éramos um novo grupo, mais promissor que meu último.
Combinamos de nos encontrar no horário combinado à frente da agência, enquanto eles buscariam uma farmácia e eu algumas cervejas. Logo encontrei um uma praça (ou algo que foi uma praça, uns vinte anos antes) com um botequinho formado por meia dúzia de mesas na calçada e um garçom bem-humorado. Tomei duas paceñas, que desceram levíssimas debaixo de um bravo sol boliviano das duas da tarde. Paguei com gosto, agradeci ao garçom e caminhei mais um pouco.
Não há muito para ver numa tarde de domingo em Uyuni. A cidade claramente não trata bem seus dez mil habitantes, cujas atividades de lazer se resumem a tomar alguns tragos em frente a trens velhos transformados em monumentos (ou será o contrário?) ou comprar quinquilharias numa feira que lembra uma versão em miniatura da Rua 25 de Março em São Paulo. Cansado de carregar a cargueira, voltei ao ponto de encontro e logo estava com meus novos amigos.
Na espera, pudemos nos conhecer melhor. Sophie e Mathié eram namorados há alguns meses e estavam numa longa jornada pela América do Sul, vindos do Equador e do Peru. Pretendiam ainda conhecer os lagos chilenos, atravessar para a Argentina e explorar a Patagônia antes de voltarem a Paris. Me deram algumas dicas da Ilha Chiloé, as quais retribuí falando-lhes sobre a incrível experiência em Rapa Nui que tivera no ano anterior. Animados, conversamos bastante em inglês – que Sophie falava bem – e espanhol, idioma com o qual Mat tinha mais facilidade.
Nosso carro chegou com quase duas horas de atraso. Já estávamos nos preparando para telefonar ao Chile, procurar um hotel ou organizar um bom Plano B quando Hugo surgiu com um Toyota ainda mais antigo que os que já tínhamos visto nos dias anteriores, dirigindo feito um maluco pela avenida empoeirada. À essa hora quase não havia mais sol e o vento já varria nossos abrigos, avisando que mais uma noite pedia passagem. Sem uma única palavra de desculpa, Hugo deu a partida e se calou por horas, presentando-nos com música pop boliviana de qualidade duvidosa. Mais jovem que José, Hugo era ainda mais introspectivo, motivo pelo qual desisti de puxar conversa. Aproveitei para aprecisar o pôr-do-sol e cochilar um pouco. Lembro de ter acordado uma única vez, quando Hugo parou para abastecer.
Felizmente a viagem foi tranquila. Rodamos até por volta de 20h, quando chegamos ao povoado de Villa Mar, envolto em neblina e frio congelante. Com alguma dificuldade, nosso motorista encontrou a casa de Roberta, uma simpática gordinha no auge de seus sessenta, setenta anos, que nos abrigou num quarto simples mas aconchegante, com três camas de solteiro e uma disputada tomada. Infelizmente o banheiro era imundo e a água muito fria, então não pudemos contar com ele. Compensador, entretanto, foi o jantar: uma bela macarronada à bolonhesa, com queijo ralado abundante e um vinho chileno supreendentemente honesto. Exaustos, conversamos um pouco e apagamos a luz pouco antes das 23h, para acordar seis horas depois, com Hugo gritando atrás da porta: desayuno! Listos?
Quarto dia
Mais quarenta minutos e já estávamos na estrada, com o sol à pino e muito orvalho em evaporação, apesar do frio intenso. Hugo dirigiu por várias horas num caminho bastante diferente do que usamos na ida, o qual eu tentava adivinhar pelo mapa, inutilmente, porque não havia referências visíveis. Sem atrativos do naipe daquelas belas lagunas dos dias anteriores, pudemos apreciar alguns pequenos e isolados vilarejos, umas poucas plantações e muitos quilômetros repletos de nada além de sal, pedra e areia.
Depois de tantos dias mais perto do céu, na altura de Villa Allota, começamos a descer em direção à fronteira. Flocos de nuvens se moviam rapidamente entre as montanhas à leste, enquanto nacos de vapor pairavam sobre a estrada, mal se movendo, como véus de seda antiga ao vento. Foi quando a monotonia acabou.
Dois trêmulos indivíduos acenavam, do meio da estrada, ao lado de um antigo utilitário japonês. O vento varria seus pesados casacos de inverno enquanto esticavam seus pescoços tentando enxergar além do pára-brisa embassado de nosso carro. Hugo mostrou-se apreensivo e tirou o pé, num movimento estrategicamente discreto. Franziu a testa, examinou o retrovisor e diminuiu a marcha, como quem espera pelo movimento do outro jogador. Preocupados, nos entreolhamos sem conversar, num amistoso França e Brasil. Mentalmente tentei repassar onde estavam meus valores, percebendo que havia cometido um erro.
Tenho por mim que numa jornada internacional, passaporte e cartão de crédito são o melhor kit de sobrevivência, motivo pelo qual sempre os tenho em duplicata. No caso do MERCOSUL é ainda mais fácil, já que o passaporte pode ficar na mala com algum dinheiro e o RG na doleira, junto ao cartão. Havia mantido dessa forma desde o início da viagem, mas o triunfo iminente sobre todo o perrengue dos dias anteriores me deixou mole e acabei largando tudo na mochila de ataque, que conservava junto a mim dentro do carro. Se algo acontecesse ali, seria tarde demais.
Os homens continuavam sacudindo os braços acima dos ombros e Hugo parecia cada vez mais preocupado. Lancei um que passa, respondido com murmúrios ininteligíveis. A França reiterou, com o mesmo resultado. Mais firme, insisti: um no te preocupes soou pior que o silêncio, pouco antes do carro estacionar, à cerca de trinta ou quarenta metros da barreira e esperou. Os homens se cansaram e vieram ao nosso encontro, o pequeno à minha janela e o parrudo na de Hugo.
Foi quando nosso amigo tomou a decisão que eu mais temia: ainda com o motor ligado, saiu do carro sem maiores explicações e foi ao encontro deles pouco à frente do carro, exercitando um espanhol alienígena. E ali ficaram, por longos cinco minutos, discutindo acaloradamente, enquanto eu olhava em volta imaginando para onde poderia correr se as coisas piorassem.
Hugo voltou. Desligou o carro. Abriu o porta-malas. Sacou uma mangueira. Subiu no Toyota. Desconfiado, saí do carro e perguntei qual era o problema. A sorte é que o baixinho era mais compreensivo e resolveu falar, despacito, para que eu entendesse. Agradeci e voltei para dentro, encontrando o casal de olhos bem abertos, meio curiosos, meio apavorados: “os caras precisam de gasolina, mas não tem dinheiro, então negociaram o combustível para agora, comprometendo-se a pagar ao final da semana, deixando alguma coisa em garantia, que não entendi bem o que é, mas felizmente não parece que somos nós”. Aliviados, saímos do carro, no meio do frio mesmo, para fumar um cigarro e dar algumas risadas.
Em quinze minutos estava tudo resolvido e seguimos viagem, chegando à aduana boliviana umas três horas depois. Hugo desceu as malas com alguma cerimônia, agradeceu friamente nossa companhia e sumiu na poeira, aparentemente de volta ao caminho por por onde viemos. Antes de partir, informou que deveríamos carimbar os passaportes e aguardar pela chegada de um ônibus que, deveríamos confiar, estaria à caminho. Felizmente ele chegou rápido e partimos para a última etapa da viagem: a aduana chilena.
Foi provavelmente o procedimento mais difícil de imigração que já passei na vida. Passaram as mochilas pelo Raio – X, pediram para abrir, remexeram os pertences, perguntaram sobre drogas, artesanato e comida, nos revistaram, colocaram as mochilas enfileiradas no chão, passaram cães farejadores por três vezes em cada mala e revistaram minuciosamente o ônibus. Quase uma hora depois, permitiram que seguíssemos viagem, felizmente sem maiores incidentes – exceto por um rapaz que trazia consigo duas perigosíssimas bananas bolivianas, as quais foram direto para o lixo. O Chile estava salvo.
Pontualmente às quatorze horas eu estava de volta ao hostel Campo Base, no coração de San Pedro. Consegui o mesmo quarto que ficara dias antes, mas dessa vez sozinho por pelo menos mais quatro horas. Tomei um banho demoradíssimo, fiz uma barba impecável e deitei rememorando a aventura. Havia vencido o Salar, a viagem havia sido ótima e agora era só curtir seu epílogo, da melhor forma possível.
Pouco antes do sol se pôr, acordei com uma americana e um israelense derrubando coisas no quarto. Me apresentei, conversamos por alguns minutos e em pouco tempo já tínhamos um bom programa para a noite: empanadas, macarrão e algumas garrafas de vinho. O resultado foi uma deliciosa noite de risadas e relax, de minha parte pelo incrível capítulo final de uma viagem épica, da parte deles por ser a introdução de uma jornada que terminaria na semana seguinte, da mesma forma que a minha.
Viajar é reverenciar um viver intenso, pleno. Quando tudo dá certo, apesar das probabilidades, rabiscamos planos maiores. De ir ainda mais longe.
Veja também:
– Relato e roteiro de uma semana no Deserto do Atacama
– Guia completo com dicas gerais para mochilar no Deserto do Atacama
A viagem para o Salar é uma verdadeira prova de resistência. Tudo é muito distante. Sai de La Paz ainda de madrugada. Fiquei no melhor hotel da cidade, mas o sofrimento é longo, pois na estrada não se tem restaurantes ou qualquer infra-estrutura mínima para que possamos garantir e dar tranquilidade ao nosso corpo. É uma aventura e conhecer o desconhecido é sempre bom. Faria novamente? Não. Mas valeu a pena? Sim.
Francisco, tens razão. Foi uma jornada extenuante, radical, intensa e mágica. Jamais esquecerei daqueles quatro dias duros e malucos entre paisagens sem par no mundo. A região é tão inóspita e tem uma beleza tão única que a atmosfera do lugar já é onírica desde os primeiros quilômetros. Vale muito a pena.
Meu sonho! Amei o post!
Valeu, Marini.
Obrigado pela visita. E não deixe de fazer a viagem. Tenho certeza que será uma experiência tão marcante quanto foi para mim!