Atualizado em 28/03/2017
Conhecidíssimo como um dos melhores destinos de neve e esqui da América do Sul, Ushuaia é muito mais que isso. Ainda pacata nos dias de hoje, a cidade do fim do mundo oferece aos seus 50 mil habitantes e turistas do mundo inteiro uma miríade de passeios, bons restaurantes, locais para compras, cassinos e diversas atividades de aventura como expedições em 4×4, viagens de trenó, hiking e trekking.
Os viajantes comuns costumam contar suas peripécias focando no ponto de partida e no ponto de chegada, ignorando os contratempos. Paul Theroux, romancista norte-americano de aventura do qual sou fã, escreveu um clássico sobre uma viagem que realizou nos anos 70 até a Patagónia, no extremo sul do continente americano, cujo texto é famoso por destacar não o destino em si, mas percurso e percalços no avançar.
Em “O Velho Expresso da Patagônia” , Theroux assevera que a Argentina é um país dividido entre as altas terras do norte, cheias de folclore, montanhas e colonos; e os pampas úmidos do sul, com suas fazendas de gado e grandes vazios, a com a maior parte do território ainda virgem (“pampas” deriva de uma palavra aimará que significa “espaço”). É uma visão bem desenvolvimentista, mas têm seu fundo de verdade: a fronteira Sul da América é selvagem, extrema, bela e solitária. Rumo ao fim do mundo, as planícies áridas dão lugar às florestas de lengas, quase sempre cobertas de neve e mistério. Em Ushuaia, os Andes morrem no mar, mergulhando aos olhos dos turistas em águas geladas e perigosas. É nesse passo que relato minha viagem à região. Espero que gostem!
Separada do continente pelo estreito de Magalhães, a Terra do Fogo é um arquipélago com baixíssima densidade demográfica, comumente varrido por ventos fortes e pancadas de chuva. Frio e umidade são constantes (a máxima no verão raramente ultrapassa os 10 graus) dado que as montanhas que circundam Ushuaia formam uma barreira natural contra os ventos antárcticos. Estive por lá em setembro de 2014, quando o inverno tinha ficado para trás e a temperatura mais alta que registrei foi de 8 graus. A maioria dos turistas aparecem no verão, quando os dias são mais longos e as temperaturas mais amenas, época perfeita para quem vai a Ushuaia para caminhar, passear e divertir-se. Mas se a sua praia é o esqui, julho no alto inverno é sua melhor escolha (e este post não é para você).
A primeira viagem documentada ao extremo sul do continente americano foi realizada por Fernão de Magalhães em 1520, que apelidou a região de Terra do Fogo devido às fogueiras acesas pelos índios nas margens do outro lado do estreito. Altos, corpulentos (daí o termo Patagão, “pata grande”, por conta de seus pés avantajados) e com o hábito de andarem semi-nús, cobertos de gordura de foca, os primeiros habitantes da região foram dizimados por doenças de brancos como sarampo e varíola, potencializadas pelo clima inóspito. Saiba mais sobre eles aqui e numa agradável visita ao museu dentro do Parque Nacional.
O isolamento da região permanece, sendo impossível alcançar Ushuaia dirigindo pela Argentina (você precisa entrar e sair do Chile para chegar lá e viajar de ferry boat– veja dicas aqui ). De avião, LAN e Aerolineas Argentinas tem voos para Ushuaia, via Buenos Aires, saindo das maiores cidades brasileiras. A Aerolineas comumente é a opção mais barata, principalmente se você deixar para comprar o trecho interno quando chegar a Buenos Aires. E de ônibus, bem, custa o mesmo que via avião e são pouco mais de 3.000km…
Bem servida em matéria de transportes, Ushuaia (“baía que penetra ao poente” em yámana) tem táxis, remises (táxis particulares são legalizados na Argentina) e ônibus coletivos para qualquer parte. A cidade também é plena de albergues (fiquei no barato e bem localizado Antarctica), pousadas e hotéis para todos os gostos e bolsos. Lojas, farmácias, postos de gasolina, bancos e mercados também estão presentes, nos horários mais diversos. A estrutura é muito boa e em quase todo ambiente a calefação está ligada, tornando a vida interna bastante agradável.
Reuni mais dicas gerais para uma boa mochilada por lá nesse post. E a seguir, meu relato dia a dia de uma viagem muito rica, variada e aventureira.
DIA 01
Depois de remarcar meu voo QUATRO vezes na mesma semana, a Aerolineas “aprontou” logo no meu desembarque em Buenos Aires: meu voo para Ushuaia havia sido cancelado devido ao “mau tempo”. Numa rápida conversa com locais, soube que esta era a desculpa padrão para overbooking e conferi que apenas os voos para o fim do mundo haviam sido cancelados, sendo que voos para cidades da região com o Trelew e El Calafate (meu destino seguinte) estavam normais. Depois de muita correria e discussão, consegui uma remarcação do voo para às 5h da manhã, o que me obrigou a passar a noite no aeroporto. Passei um stress tremendo, pois já tinha despachado a bagagem e foi anunciado que ela voltaria à esteira. Reparei que as pessoas começaram a se revesar – enquanto uma pegava as malas, a outra ia ao balcão da Aerolineas remarcar o voo. Corri feito um louco para o balcão e de volta para a esteira, mas felizmente deu tudo certo: consegui reaver a mochila e um encaixe num voo para às 7:40. Uma hora antes do voo, novo cancelamento e mais uma discussão, que me levou a embarcar apenas às 11:00 horas da manhã, destruindo meus planos matutinos para o fim do mundo. Faz parte.
Depois de uma hora de viagem, desembarquei no simpático aeroporto “ussuaio” (é como se pronuncia). De lá ao Hostel Antarctica foram 7km de táxi, que me custaram trinta pesos (dividi com um carioca) de um total de sessenta. Algo em torno de 7 dólares, na época (setembro/2014). No caminho, já deu pra sacar a arquitetura pitoresca do lugar: antigas construções em madeira e chapa metálica com tetos empinados (para evitar o acúmulo de neve) estão pintadas em cores vivas de tintas de sobras de tinta náutica vão pouco a pouco dando lugar às construções mais caprichadas da Avenida San Martín, a principal do povoado, paralela à costa.
Devidamente instalado num quarto com mais quatro argentinos esquiadores que estavam fora, fiz amizade com três cariocas que estavam tomando uma cerveja no agradável bar do hostel e me juntei a eles para fazer um reconhecimento da cidade.
Fomos direto ver o famoso Canal de Beagle, que tem esse nome em homenagem ao lendário navio de Darwin, de onde pudemos observar o finalzinho da Cordilheira dos Andes e o Porto de Ushuaia. Ali tiramos fotos na famosa placa do “fim do mundo” e partimos para a Plaza Malvinas, uma bela homenagem aos mortos pela guerra contra a Inglaterra de 1982. No local há um bonito e bem conservado monumento, que reclama soberania territorial sobre a Ilha das Malvinas, “ocupada ilegalmente” pela Inglaterra, que a rebatizou de “Falklands”. Dica: Antes de embarcar, li um pouco sobre o conflito aqui, o que me ajudou bastante nas conversas com alguns fueguinos. O assunto é delicado: os efeitos da Guerra, que matou mais de 600 soldados argentinos e mais de 250 ingleses, são sentidos até hoje e há muitos locais que perderam entes queridos na batalha. Ainda há bastante ressentimento quanto aos ingleses e certa animosidade com os chilenos, que apoiaram a Inglaterra na ocasião. Cuidado ao mencionar o fato.
Caminhamos um pouco mais pelo porto e verificamos que ali há várias agências que fazem passeios pelo Canal Beagle (que inclui a Ilha dos Lobos Marinhos e o Farol Les Eclaireus), Isla Madaglena, tours para avistamento de pinguins/baleias e até cruzeiros para a Antárctica. Infelizmente, os passeios para avistamento de pinguins só são realizados entre outubro e abril e não pudemos fazê-lo (informe-se com a única agência que o opera, a Piratour) mas compramos o passeio para às 10h da manhã do dia seguinte pelo Canal Beagle (515 pesos )e logo partimos para conhecer os museus.
Há quatro principais museus na cidade: Museu Yamana, Museu Marítimo e do Presídio, Museu do Fim do Mundo e a Galeria Temática Pequena História Fueguina.
Não pudemos visitar o Museu do Fim do Mundo, dada a escassez de tempo, mas valeu muito a pena conhecer os demais. O Yamana é baseado em painéis bem moderninho e conta a história antiga desse povo, suas origens, hábitos alimentares e culturais, com ênfase nas dificuldades de sobrevivência num local tão inóspito. Dali partimos para a Galeria, que é toda moderninha e cheia de efeitos especiais que narram a história da região, com ênfase em seus aspectos culturais. Ficamos pouco tempo por ali e partimos para a cereja do bolo: o presídio!
O prédio do antigo presídio de Ushuaia (todos os dias, 9-20h; um ingresso vale para dois dias) foi uma das atrações que mais gostei. Demos sorte de chegar em cina da hora para a visitação guiada das 16h30 (US$ 15) que durou pouco menos de uma hora e foi muito interessante. Ali descobri que Ushuaia cresceu a partir da instalação do presídio, construído em 1896 naquela região justamente por ser um local isolado e com chances remotíssimas de fuga. Construído em panóptico, é um prédio em formato circular com um salão central e uma torre de observação, de onde os guardas podem observar todos os passos dos presos dos 5 pavilhões. O tour guiado passa pelo quarto pavilhão, restaurado e modernizado, onde é possível adentra as celas e interagir com bonecos que simulam o dia a dia da época em que o presídio funcionava. O guia conta histórias de presos famosos – algumas assustadoras, apresenta números, enumera todas as fracassadas tentativas de fuga, dá detalhes da vida difícil que os presos tinham ali: não havia aquecimento individual nas celas, apenas uma caldeira que ficava no centro do corredor. É desesperador imaginar como seria viver num lugar como aquele. Juan Perón concordava e fechou o presídio cinquenta anos atrás.
O preso mais ilustre certamente foi o serial killer adolescente Cayetano Santos Godino, que morreu esfaqueado no próprio presídio, assassinado por outros presos após matar um gato de estimação de um deles. A história de Cayetano foi contada num famoso filme argentino chamado El Niño de Barro. Sua cela foi mantida intacta e há fotos dele no local, Dá calafrios.
Ainda no presídio, conta-se a história do famoso Trem do Fim do Mundo, construído pelo presos em 1910, cujo trajeto de 25 Km servia para o transporte da madeira cortada da área em que hoje é o Parque Nacional. Há ainda uma cafeteria no centro do presídio, de onde se pode ver todas as entradas pavilhões. Um deles, o mais interessante, foi congelado no tempo e tem um aspecto um tanto macabro. Os demais servem de salas de exposições e lojinhas de artesanato e souvenirs. E por fim, nos fundos do presídio há um “quintal” onde está instalada uma réplica do Farol do Fim do mundo, que fica na Isla de los Estados, abrigando itens encontrados no local original e diversos painéis que didaticamente explicam a origem do farol e narra um pouco da vida da época em que foi construído.
O ingresso vale ainda para o Museu Marítimo – um anexo, no piso superior – que conta a história da exploração da Antárctica e seu personagens (Shackleton, Scott etc.) , fala sobre a construção de Ushuaia e compara o projeto do presídio-museu com outros projetos internacionais semelhantes . Exploramos ambos os museus em pouco mais de duas horas e saímos de lá já estava escuro e muito frio.
Cansado da viagem e do dia cheio, me arrastei pelas ruas do centro pesquisando alguns preços nas agências para os passeios Nieve y Fuego e Travessia 4×4 que pretendia fazer no final da viagem. Acabei optando pela Rayenaventura e recomendo.
Passeios fechados, fui direto para o hostel tomar um banho quente e relaxar. Recusei o convite para conhecer o Dublin Pub e caí no sono antes das 23h, depois de aproveitar um pouco o bar do próprio hostel. Infelizmente fui acordado às duas da manhã pelos argentinos, que demoraram a arrumar suas coisas e dormir. Quarto coletivo é isso aí.
DIA 2
Acordei antes das oito da manhã e quando saí, o salão do café da manhã já estava tomado de mochileiros e esquiadores. Meus colegas de quarto já haviam saído também e aproveitei para arrumar minhas coisas e dar uma olhada nas anotações de atrações locais que havia feito antes de viajar. Tomei café com calma, encontrei os colegas cariocas e partimos para o passeio pelo Canal de Beagle.
Gostei bastante da viagem! O barco era bem estruturado, com calefação e serviço de lanchonete. Todo envidraçado, permitia aos que não curtem muito o frio apreciarem a paisagem. Fiquei quase o tempo todo do lado de fora, fotografando sem parar os bandos de pássaros, o Farol Les Eclaires, os incontáveis lobos marinhos nas pequenas ilhotas do caminho e a bela Isla de los Pájaros.
Ao final, uma curta caminhada numa das Ilhas Bridges também foi bastante divertida, de onde trouxe boas fotos e a recordação da paisagem bem diferente daquele local, rodeado por pequenas ilhas, emolduradas por montanhas nevadas, separadas por uma água gelada e incrivelmente azul.
Retornamos a tempo para o almoço e nos despedimos na Av. San Martin, a principal da cidade. Meus companheiros partiram para o Cerro Castor onde teriam aulas de esqui e eu me dediquei a procurar um bom restaurante para provar a famosa gastronomia fueguina.
Depois de pesquisar um pouco os cardápios das ruas principais, optei por experimentar o famoso cordeiro fueguino, feito aberto, no fogo de chão, no Villa Las Totoras. O prato típico foi muito bem servido e combinou bastante com a cerveja artesanal Beagle Roja que o garçon sugeriu. Não achei espetacular, mas valeu pela curiosidade. Oitenta pesos bem pagos.
Aproveitei o resto do dia para visitar as lojas, trocar dinheiro (a loja de ursinhos de pelúcia na rua principal é a que faz o melhor câmbio da cidade) e fechar os passeios dos dias seguintes nas agências. Tentei a “Brasileiros em Ushuaia”, mas era levemente mais cara que as demais, cobrando o mesmo preço que o hostel me mostrou. Acabei fechando um pacotão com 10% de desconto com a Tierra Turismo, cujos serviços foram excelentes. Recomendo.
À noite, encontrei os camaradas do Rio e rangamos no animado Marcopolo. Por oitenta e cinco pesos, comemos um saboroso chorizo (um contra-filé mais gorducho) com batatas fritas e sorvete de calafate (frutinha típica da região). Na sequência, fomos curtir umas cervejas no Pub Dublin, que é provavelmente a melhor opção noturna da cidade. Aberto todos os dias que passei por lá, estava sempre lotado, animado e com preços razoáveis.
DIA 3
Acordei bem cedo e às oito da manhã já estava num táxi, subindo ao Cerro Martial, uma das montanhas mais altas que circundam a cidade. Do hostel até o centro invernal do Cerro paguei exatos 81 pesos argentinos pelo táxi, que subiu rapidamente os 1000m acima do nível do mar. Só o visual da subida já vale a pena! Lá em cima, me despedi do taxista, que me garantiu que não importa a hora que voltasse, sempre haveria taxistas parados por ali para me trazer de volta. Naquele horário, no começo da manhã, não havia ninguém.
Como o inverno já havia acabado, a estação de esqui e o teleférico (aerosilla) estava fechado. Como o frio era intenso, tomei um caríssimo café na lanchonete que fica na entrada, fechei a jaqueta e comecei a subir.
O trekking começou numa picada bem íngrime cheia de pedras e com algumas pontes de madeira, margeando o teleférico, vencível em pouco mais de meia hora. Havia alguns trechos de lama, formados por poças de água de degelo que dificultaram um pouco um caminho que aparentemente seria muito fácil. Ao chegar na base superior do teleférico, me virei pela primeira vez para o mar e vi Ushuaia lá de cima, banhada pelo Canal de Beagle ao fundo a Ilha Navarino, envolta em nuvens carregadas. Observação: em absolutamente todos os dias da viagem o céu estava cinzento, carregado. Praticamente o ano todo é assim e essa é a graça do fin del mundo: inóspito, agressivo, bruto.
Daí pra frente foi só alegria. Em frente havia um manto branco incrível, lindíssimo, que foi meu primeiro contato com neve na vida. Afundei, botei a mão, fiz bolinhas para atirar longe, voltei a ser criança. Em direção à montanha, segui marcas de botas na neve, que margeavam um riozinho de água transparente, num platô bem definido e tranquilo de fazer. Alguns buracos na neve fofa se mostraram traiçoeiros, mas nada fora do normal.
Mais meia hora de caminhada e cheguei ao trecho mais íngrime da subida, que faz um zigue-zague até a ponta do glaciar . Antes de começar, parei para comer uns morangos e tomar um pouco d´água e me virei: não dava para ver mais nada. Flocos de neve começavam a cair atrás de mim e uma névoa forte escondia praticamente toda a torre superior do teleférico. Fiquei alguns minutos ali esperando a neve chegar e dei ao momento sua devida importância: a primeira neve a gente nunca esquece. Um vento gelado, cortante, incomodava meu nariz mas eu não estava nem aí: ver floquinhos brancos de neve rolarem pela jaqueta pela primeira vez foi uma experiência que esperei muitos anos para realizar. Na volta, aliás, nevava no mesmo lugar, porém de forma mais pesada, consistente. Leia aqui sobre tipos e formatos de neve diferentes.
Esse zigue-zague durou mais trinta e cinco minutos. No topo, parei para descansar, fazer um lanche e meditar um pouco. Infelizmente o tempo estava bastante fechado no glaciar e eu tive que apenas imaginar a fantástica visão da bahia que aquele mirante deveria ter. Nevava mais forte e o chão estava bem mais fofo que na subida, então não pude ficar mais do que quinze minutos por ali. Contemplei, me senti grato pela oportunidade e desci, feliz da vida por ter feito minha primeira caminhada na neve.
Levei pouco mais de uma hora para chegar à base da estação, onde haviam algumas crianças tendo aulas de esqui. Poderia ter ido mais rápido se não tivesse tentado cortar caminho pela pista desativada, movimento que não foi lá muito feliz dado que em cinco minutos tive duas quedas e tive de voltar ao caminho lamacento. Só se aprende na prática.
Vencida a montanha, tomei um táxi para a cidade e pouco antes do meio-dia já estava a caminho do belo Parque Nacional Tierra del Fuego. Com quatro trilhas principais na área mais acessível do parque, mais seis senderos na área da Bahia Lapataia, o ideal é passar pelo menos uns cinco dias acampado por ali, mas como eu ainda tinha muita viagem pela frente e meu tempo era escasso, fiz o que pude e reservei mentalmente um roteiro completo no local para o futuro.
Com a tarde toda livre, fiz as trilhas mais próximas do centro de visitantes, de frente para o Lago Roca. Consegui fazer a costera (8km) em mais ou menos 3,5h, trilha muito bonita e cênica, além de plana e tranquila de caminhar.
A Hito XXIV já é mais íngrime e apesar de seguir até a fronteira com o Chile, segui a orientação de um guarda-parque que me disse valer a pena apenas até o trecho em que as árvores se fecham, pois depois dali não haveria mais atrativos e a trilha terminaria em frente a uma placa marcando a divisa, mandando voltar.
Cheguei de volta ao museu já próximo das 18h, mas a tempo de tomar uma boa cerveja artesanal chamada Cape Horn, enquanto assistia o pôr-do-sol de dentro da lanchonete, abrigado do frio intenso.
Recomendo, ainda que rapidamente, uma visita ao pequeno museu local. Lá há representações de cenas da vida dos povos antigos que habitavam a região e alguns fósseis de animais encontrados ao longo do parque, com suas respectivas explicações. Consegui aproveitar um pouco mais, pois um casal que cruzei no entorno do lago me ofereceu uma muito bem-vinda carona a Ushuaia. Caso contrário, o último ônibus partiria às 18h e eu teria aproveitado bem menos.
Chegando ao centro, tomei um longo e relaxante banho no hostel e saí para comer. Como estava tarde, não encontrei companhia para dividir um prato, então resolvi me dar de presente um jantar no ótimo Chiko. Seguindo o conselho do garçon, pedi um filé suiço: um bife de lomo (corte similar ao nosso filé mignon, porém mais alto) coberto com um mix de queijos, com batatás noisette e ervilhas por cima. Acompanhado de uma Beagle roja, gastei 100 pesos numa das melhores refeições que já fiz na vida! Atendimento dez, custo-benefício muito bom.
DIA 4
Acordado pelos argentinos mais uma vez no meio da madrugada, tive um sono bem perturbado e acordei cansado. Tomei um café mais demorado, conversei um pouco com um paulistano do Brás que estava indo embora e arranhei um pouco meu inglês com um casal de ingleses que estavam fazendo hora esperando seu transfer para o Cerro Castor. Antes de sair, pedi informações mais precisas ao gerente do hostel sobre o Cerro Del Medio, meu destino naquele dia, e parti pouco antes das 10h da manhã.
Passei no mercado La Anonima (esquina da Gobernador Paz com Rivadavia) para fazer um lanche de trilha e anotar alguns preços de lembrancinhas e comecei a subida a seguir. A partir da calle Lasserre, perpendicular a av. San Martín subi até a calle Alem, passando pelo Hotel Ushuaia. Por ali, o mapa que o gerente do hostel me deu, mandava caminhar até uma praça e subir uma picada à direita de uma estação de tratamento de água, a qual encontrei com alguma dificuldade depois de desviar uma obra viária que impedia a passagem.
Daí para frente o mapa era impreciso, mas passando a última casa, pouco antes do rio, havia uma trilha bem definida e logo adiante um uma guarita onde havia um guarda-parque. Cumprimentei o entediado senhor – que ouvia uma músida do Fito Paez num radinho de pilha – e segui adelante, como me indicou. Ao contrário das trilhas do Parque Nacional, o começinho desta estava um pouco sujo, com alguns restos de embalagens e alimentos pelo caminho, que foram rareando até sumir, com mais ou menos meia hora de caminhada além da portaria.
A trilha é fechada, atravessando um bosque de lengas – árvore decídua, nativa da depressão sul dos andes, que tem troncos meio acinzentados, bem finos e sem folhagem, com copa bem alta. Alguns trechos estavam bem fechados, com bastante líquen e trechos escorregadios.
Depois de mais de uma hora lá dentro, as árvores começaram a ficar mais baixas e finas e no chão começaram a aparecer crostas de gelo. Fiz esse trecho final da floresta com bastante cuidado.
A melhor parte é que de repente as árvores se abriram num descampado imenso, coberto de gelo e neve, com pequenos fios de água cristalina e uma vista estonteante de Ushuaia e do Beagle. Como o tempo estava aberto, pude ver finalmente a cidade de cima e os barcos no canal, muito mais nítidos que no dia anterior.
Fiquei quase uma hora caminhando pelo descampado, tirando fotos, tentando identificar os animais donos das pegadas que encontrei na neve, apreciando a paisagem. À beira do mirante, quando fazia um lanche, olhei para das montanhas atrás de mim para o oeste notei que ao final do platô havia uma picada aberta entre alguns arbustos e mais à frente uma estrada, muito provavelmente a estrada do Cerro Martial. Conclui que estava além da metade do caminho e pensei: por que não?
Caminhei sobre uma geleira praticamente sem neve durante cerca de meia hora até atingir uma crosta mais fina, que tinha um pouco de folhagem, neve mais fofa e fios de água para todo lado. Avancei com cuidado sobre o terreno, que foi ficando mais difícil, com neve cada vez mais fofa e difícil de identificar. Fiz um bastão com um pedaço de árvore seca que encontrei no caminho, mas minha falta de experiência não me permitiu utilizá-lo corretamente. Afundei uma, duas, três vezes na neve. Em cada uma delas, como os tornozelos ficaram submersos e minhas botas não eram próprias para o terreno, tive que tirá-las, remover o excesso e seguir em frente.
Cada vez mais cansado, fui me descuidando na ânsia de chegar logo à estrada até que afundei de uma vez, até a altura dos joelhos. O gelo debaixo da neve tinha se partido e eu atingira um rio subterrâneo, geladíssimo.
Tive um trabalhão para tirar as botas, torcer as meias, secar as pernas e retomar o fôlego. O quadro, entretanto era bem claro: hora de voltar. Chateado, calculei que tinha cerca de 2,5h de caminhada para chegar até a guarita novamente. Como eram cerca de 15h, haveria tempo de sobra até o sol se pôr, mas era bom me apressar e não perder muito tempo. Caso tivesse algum problema no caminho, poderia ter problemas com a falta de luz apropriada. As pegadas recentes que encontrava na neve também me preocupavam um pouco.
O sol já se escondia à minha esquerda, enquanto uma fina camada de névoa encobria o mar à direita, quase impossibilitando sua identificação. Avancei devagar, tentando não incorrer nos mesmos erros da ida, mas o gelo parecia ainda mais quebradiço e percebi que realmente não tinha sido uma boa ideia seguir por ali. Cansado e de mau humor, deixei de torcer as meias e esvaziar a neve da bota a cada vez que afundava, prosseguindo de forma imprudente e atabalhoada, até chegar à geleira novamente e notar que àquele horário estava difícil de enxergar a entrada na floresta. As lengas pareciam todas iguais e o espaço entre elas sugeria picadas em todos os lugares, me fazendo andar de um lado para outro tentando adivinhar por onde tinha saído. O sol já tinha se escondido atrás das montanhas e a luz já começava a rarear, mesmo antes das 16h30, quando decidi tentar uma picada, que se mostrou equivocada quinze minutos depois. Tentei voltar e quando me dei conta, estava perdido.
Sentei, comi uma barra de chocolate, chequei meu equipamento e resolvi dar uma olhada no mapa. Ele acusava um pequeno rio que cortava o bosque, o qual poderia me servir de referência, além das montanhas à esquerda e o mar à direita. Só não me desesperei naquele momento porque sabia exatamente em que direção ficava a cidade, então em último caso poderia abandonar a tentativa de encontrar a trilha e seguir naquele rumo. Lá de cima, um simpático pássaro me vigiava desconfiado e eu só pensava em cair fora o mais rápido possível.
Depois de muito tentar, foi exatamente isso que acabei fazendo. Rumei colina abaixo, tentando achar uma forma de sair do bosque e atingir os terrenos de alguma fazenda próxima. Uma grande depressão nos limites das árvores me impedia de descer, o que me fez andar alguns quilômetros para o lado oposto ao que desejava, tentando atingir vencer o obstáculo natural. Só consegui atingir uma fazendo por volta das 18h, quando ainda tive que correr de um cachorro, pular uma cerca e descer pela fazenda vizinha. Tomei uma senhora bronca de uma moça que embalava um bebê na varanda da casa e ainda andei por algumas ruas até encontrar um táxi que me levasse direto ao hostel, a tempo de não perder o passeio que tinha contratado para a noite cuja saída estava marcada para às 19h.
Cheguei exausto, mas tive que tomar um banho, me trocar e arrumar minhas coisas em menos de quinze minutos. Ainda adrenado, entrei na van do tour “nieve y fuego” e me sentei no fundo, cumprimentando rapidamente a galera. Não havia planejado isso, mas fazer um “passeio de tia” pra fechar o dia seria o epílogo de um dia espetacular! Aos poucos meus nervos foram entrando nos lugares e quando chegamos à fazenda Tierra Maior, já estava completamente relaxado.
O NF funciona mais ou menos assim: uma van faz o traslado de Ushuaia à fazenda, onde se escolhe uma das formas de chegar a um velho rancho numa área mais remota da propriedade, sendo elas um trenó puxado por huskies (prática esportiva da qual não sou adepto) ou motos de neve. Quando contratei o passeio, disse que se fosse obrigado a fazer o passeio de trenó eu cancelaria, mas me garantiram que poderia ir e voltar de moto de neve, bastando avisar os responsáveis. Como eu já deveria ter imaginado, típica enrascada de agências de turismo, o passeio é engessado e não me permitiram fazer essa mudança. O resultado é que fui de trenó e voltei de snowmobile.
Sinceramente, não gostei do trenó. Primeiro, nem huskies eram, mas algum híbrido que lembrava os originais na aparência. Huskies são conhecidos na Sibéria há mais de um milhão de anos, quando foram desenvolvidos para puxar trenós, em condições de frio extremo, pelo povo chukchi. Fortes e resistentes, em nada lembram esses da Tierra Maior, que estavam magros e choravam o caminho todo. Reclamei com o organizador, que bateu em alguns cães mais de uma vez durante o transporte, o qual me disse que eles eram manhosos e que “era assim mesmo”. Não me diverti.
Chegando ao rancho, há um caminho marcado com tochas e uma construção rústica de madeira, de formato circular, sem teto, com bancos presos às paredes. No centro, uma grande fogueira e alguns anteparos com panelas. Faz bastante frio, apesar da fogueira e mesmo com os chás, chocolates, espetinhos e vinho à vontade que são servidos, a ventania que entra pelas frestas incomoda quem não curte temperaturas baixas.
Eu me diverti bastante – ainda que em vez de música típica, tocam-se clássicos internacionais no violão – e adorei o vinho servido (um malbec local) que me fez relaxar depois do dia atrapalhado, mas saí com a jaqueta impregnada de cheiro de fumaça. Na volta, gostei bastante de usar a moto de neve e consegui arrancar bastante com ela, apesar das rígidas regras de condução. No fim das contas acho que valeu à pena, ainda que a lavanderia do hostel não tenha conseguido tirar o odor de fumaça da jaqueta, que me acompanhou por toda a viagem.
DIA 5
Meu último dia em Ushuaia foi absolutamente perfeito. Acordei relativamente cedo, tomei um bom café da manhã e por volta das 9h da manhã um Land Rover veio me buscar para fazer a famosa Travessia de Los Lagos 4×4. À bordo, dois casais baianos e um chileno me esperavam, além do motorista Matias. O dia estava mais frio que de costume à essa hora e quando chegamos ao Paso Garibaldi, que tem uma das vistas mais impressionantes que pude apreciar na vida: perfilados, podíamos ver o Lago Escondido à frente e o Fagnano atrás, montanhas nevadas à esquerda e à direita. A neve caindo lentamente sobre nós deixava uma sensação ainda melhor.
De lá, saímos da estrada a passamos a atravessar os lagos pela margem, ora em meio a lamaçais, ora pequenos riachos que desaguam nos lagos (com direito a castores e castoreiras) e até mesmo dentro d´água em alguns trechos.
Paramos num acampamento abandonado de lenhadores e lá Matias cortou lenha, fez uma fogueira, improvisou uma cozinha e fez um delicioso mate, com muito queijo, salame, patês e chocolate quente.
De lá, seguimos sacolejando no Land Rover por bosques, pedras e pequenos rios, sempre animados pela boa conversa do Matias e da música típica que ele gostava de cantar e explicar para nós. Fizemos também algumas curtas caminhadas, almoçamos numa bela cabana um cordero fueguino muito superior ao que havia experimentado em Ushuaia e tomamos bastante vinho.
Infelizmente as condições metereológicas não permitiram um passeio de canoa que pessoalmente gostaria de ter feito, mas fomos recompensados por alguns pequenos trekkings em meio à belíssima paisagem do Fagnano. Valeu muito à pena e fechou minha viagem com chave de ouro!
À noite, depois de um pouco mais de Dublin, me despedi dos cariocas e dormi sozinho no quarto, pela primeira vez, sem os barulhentos argentinos. O que foi muito bom, porque acordaria na madrugada para partir rumo a El Calafate, próxima etapa da viagem.
Animou-se? Veja a seguir dicas gerais de Ushuaia para mochileiros e o relato do restante da viagem pela Patagônia.
Belo texto. Fui trabalhar na patagonia uns 10 anos atrás e nunc esqueço os cordeiros que comi com malbec nos restaurantes. Era caro mas valia muito. Vejam o doc TODO SOBRE ASADO, na netflix, que fala da tradicional culinária argentina , especialmente as técnicas de churrasco (ou asado ) e as tradicoes. Muito legal
Grato pela visita e pelo comentário, Renato. Ainda não vi o documentário, mas já adicionei à minha lista no Netflix.
Grato, Renato! Assisti o documentário que você indicou e realmente é bem interessante. Pode soar politicamente incorreto nos dias de hoje, mas cabe na proposta, avaliando-se o contexto daquele país.
A TENSÃO NA PATAGÔNIA NÃO SE RESUME AOS ÚLTIMOS ANOS. REMONTA A PONTOS EXTREMAMENTE SENSÍVEIS NA HISTÓRIA ARGENTINA, COM OS QUAIS O PAÍS SE VÊ NOVAMENTE ÀS VOLTAS
Link para matéria: https://bit.ly/2Vpf5Mv
Reportagem excelente do Nexo Jornal sobre a questão indígena na Patagônia. Viajar com consciência de onde se está é fundamental!