Atualizado em 28/03/2017
Bastante satisfeito com a jornada em Ushuaia, desembarquei em El Calafate com o humor pleno e ansioso para conhecer aquela que prometia ser uma das maior es atrações da minha visita à Patagônia argentina: o gigante glaciar Perito Moreno (esse grandão na foto aí em cima). Naqueles dez quilômetros que separam o aeroporto da entrada da minúscula cidade, fiquei imaginando como seria caminhar sobre aquele gelo todo e como meu corpo se comportaria diante do frio extremo.
Depois da aventura no Cerro del Medio, minha perna direita ainda estava um tanto arisca e a ideia de caminhar por várias horas sobre um bloco de gelo gigante usando grampões nos pés me preocupava um pouco. Ainda mais diante das advertências que a Hielo y Aventura havia me passado dias atrás via e-mail. Mas sentado naquele ônibus, olhando para as montanhas passando, a empolgação e a ansiedade vinham num crescente tão forte que desistir não era uma opção.
Felizmente. O que se segue é um relato detalhado sobre minha visita em 2014 ao Parque Nacional Los Glaciares, a caminhada Big Ice, um bate-e-volta a El Chaltén com direito a um circuito curto em torno do Fitzroy e minhas impressões da visita ao Museu Glaciarium e seu famoso Glaciobar, com preços, horários e dicas atualizadas.
Logo ao desembarcar à frente do hostel America Der Sur, a primeira surpresa: que lugar belíssimo! Localizado no alto de uma colina, as instalações são muito charmosas e tem vista para o incrível Lago Argentino, o que por si só já proporciona fotos incríveis, especialmente ao nascer do sol. Achei bacana o hostel possuir banheiro privativo mesmo para os quartos coletivos, água quente e chão calafetado 24 horas por dia, transfer a partir do aeroporto, bons armários individuais, Wifi gratuito e bem razoável, cozinha equipada, guarda-volumes e roupas de cama de boa qualidade. Recomendo a reserva via booking, cujo preço é o mesmo cobrado via site. Como é bastante concorrido, deixo aqui uma segunda opção – Calafate Hostel – que me foi muito bem recomendado por amigos que fiz na viagem.
El Calafate
Devidamente instalado, conversei bastante sobre as atrações locais com o garoto da recepção – muito atencioso – o qual me forneceu dicas valiosas. Me deu também um cupom de desconto de 30% para um restaurante local muito popular chamado Mi Rancho onde comi uma bisteca de cordeiro bastante saborosa e farta. O prato mais duas taças de vinho e um sorvete de calafate custaram apenas 15 dólares ali, o que é uma pechincha diante dos altos preços da cidade. Pergunte pelo cupom!
Aliás, o nome da cidade é inspirado num arbusto abundante na região, cuja seiva dessa planta foi muito utilizada pelos índios tehuelches para impermeabilizar os couros e peles a fim de se proteger do frio intenso e pelos primeiros colonizadores europeus para calafetar as madeiras dos barcos. O sabor lembra mirtilo e dessa fruta os patagões fazem bolos, sorvetes, geléias e sucos bem saborosos.
A pequena cidade, localizada na província de Santa Cruz, próxima da fronteira da Argentina com o Chile, é uma espécie de Campos de Jordão da Patagônia, repleta de hotéis bacanudos, lojinhas de artesanato e roupas de inverno, chocolates e bebidas. Por ali passam turistas de todo tipo: desde interessados em visitar apenas o glaciar a mochileiros de passagem para Torres del Paine, no Chile, além de escaladores rumo a El Chaltén, com destino final no topo do Fitzroy. Há também portenhos que descem todos os anos a El Calafate apenas para descansar e comer bem.
Por falar em restaurantes, assim como em Ushuaia, a carne bovina é o ingrediente mais usado por aqui. Se você não é um iniciado, saiba que os cortes argentinos mais comuns são Bife de Chorizo (nosso contrafilé, mais alto), um filé de carne de costela chamado de Bife Ancho, o Vacio (nossa fraldinha), a Tapa de Cuadril (algo parecido com a nossa picanha, porém com a gordura no meio da carne, não na ponta), a Colita de Cuadril (uma maminha mais gorda) e o famoso Lomo (nosso filé mignon, mais alto). Também bastante populares são o Ojo de Bife (pedaço redondo da ponta do contra-filé) a Costilla (bisteca) e a Tira de Assado, que nada mais é do que fatias de carne de costela cortadas na horizontal. Lembre-se que o ponto argentino é menor que o nosso (o argentino prefere a carne ligeiramente mais mal passada que o brasileiro) e que em geral a carne não é temperada (ou leva no máximo sal). Geralmente molhos como o chimichurri é que darão o sabor à carne, depois de servida.
Em Calafate, não há como fugir dos altos preços se você procura comer bem. Sendo o seu caso, recomendo que visite a lista dos melhores do Tripadvisor. Alternativamente, gastar pouco também é possível: apesar de a especialidade ser pizzas e massas, inclusive para viagem, o Il Postino também serve excelente empanadas por apenas $6,00 num local simples, porém bem limpo e com atendimento bacana. Outro clássico “!mão de vaca” da cidade é o La Lechuza, que fica na Av. del Libertador 932S e serve boas empanadas por apenas AR$4. Outra dica bacana é comprar seus ingredientes no La Tostadora Moderna e cozinhar no hostel. Na minha passagem, um talharim, uma latinha de tomates pelados, algum manjericão e azeite saíram por $20 e serviram quatro pessoas lá no hostel. Improvise!
Nesse primeiro dia. depois de dividir algumas garrafas de vinho com um grupo de brasileiros que haviam voltado do Glaciar, revisei meu equipamento e fui dormir por volta da uma da manhã, ansioso pelo ponto alto da viagem que viria a seguir.
Parque Nacional Los Glaciares
Acordei às seis e meia e tomei um café da manhã bastante razoável. Pontualmente, o ônibus chegou ao hostel às 7h30am e nos deixou no porto “Bajo de las sombras” ás 9h45. Lá chegando, nosso guia nos felicitou pela escolha do passeio mais completo pelo Parque Nacional Los Glaciares: o famoso Big Ice.
O Parque Nacional foi criado com o objetivo de proteger os bosques de lengas (árvore nativa que cobre boa parte da Terra do Fogo), glaciares (sinônimo de geleira), cachoeiras, estepes, fósseis, aves (mais de 80 espécies diferentes habitam a região) e huemules (espécie de veados típica da Patagônia). Sua principal característica é a grande quantidade de lagos de água gelada (oito!) serpenteados por cadeias de montanhas de 2 a 3706m de altitude. Natureza selvagem, paisagens de tirar o fôlego e esportes radicais são as atrações principais da unidade de conservação. A maioria dos visitantes se contenta em tazer o “safari náutico”, uma excursão de pouco mais de uma hora com um catamarã de 130 passageiros, escolha mais fácil pela praticidade e preço reduzido (AR$100). Muitos fazem também “mini trekking” (AR$1500) que oferece um passeio de cinco horas com direito ao mesmo percurso do safari e um trekking misto entre florestas de lengas e caminhada no gelo com crampons (grampões).
No entanto, eu já havia pesquisado e tinha certeza de que a mais autêntica experiência de caminhada com equipamento sob a neve eu teria apenas com o chamado “big ice”(AR$2500) que oferece os mesmos atrativos do mini-trekking, acrescidos de uma caminhada de quatro horas geleira adentro, com acesso aos rios de água cristalina, montanhas congeladas, poços azuis sem fundo, abismos gigantescos, moulins impressionantes e a grande experiência de andar por várias horas com os grampões.
De início, as regras bastante restritivas me deixaram apreensivo: trekking liberado apenas de setembro a abril para evitar o frio intenso, autorizadas apenas pessoas de 18 a 50 anos a fazer o percurso e proibição da participação de pessoas com sobrepeso, gestantes em qualquer período e portadores de qualquer problema de saúde crônico. De fato, a caminhada é puxada, mas mesmo eu estando bastante cansado das atividades em Ushuaia, o cenário surreal ao redor da geleira fez desaparecer de imediato qualquer dificuldade.
Ao final das 12 horas de atividade eu estava absolutamente extasiado e nem me lembrava das dores nas pernas ou cansaço. Na volta, sentado no barco tomando meu whisky (grátis,faz parte do passeio) fiquei lembrando dos rios de gelo, das grotas profundas, cheias de cores e mistérios. Acredite: o esforço vale a pena e as dores do dia seguinte serão irrelevantes frente essa experiência incrível.
Quanto às dicas para o passeio, eu recomendaria levar apenas o essencial para evitar carregar peso desnecessário: óculos de sol, protetor solar, roupa em duas camadas – uma interna para frio intenso, que pode ser uma segunda pele complementada por um fleece e uma jaqueta corta-vento – luvas, touca, botas de trekking, uma boa máquina fotográfica e uma mochila de pelo menos 30 litros para carregar seu lanche e água. Importante: não subestime o clima no platô do glaciar. Leve uma máquina fotográfica que funcione bem sob baixas temperaturas e que de preferência não tenha controles touch, os quais são bem difíceis de mexer caso você não utilize luvas sensíveis especiais. Acredite, sob o frio intenso é bem difícil tirar e colocar as luvas de volta.
Ao final do dia, o traslado ainda aguarda cerca de meia hora para fotos nos 7 km de passarelas que chegam bem perto (e dão boas fotos) do paredão de 5 km de frente por 60 m de altura. Ali você poderá assistir também a algumas quedas de gelo, se tiver sorte. Recomendo que antes de ir, o leitor aprenda um pouco sobre as geleiras e seus processos de formação e dê uma boa olhada no site da Hielo y Aventura, única agência a operar os três passeios. Vale a pena dar uma espiada também nessa coletânea de videos do gelo se partindo no glaciar ao longo dos anos e conhecer também a história do cientista, naturalista e explorador argentino Francisco Pascasio Moreno, que dá nome à geleira.
Para entrar no clima, recomendo um documentário muito inspirado e bem filmado chamado Transpatagonia (disponível no Netflix) que conta a história do jornalista Guilherme Cavallari em uma desgastante jornada de seis meses cruzando a Patagônia e a Terra do Fogo em cima de uma bicicleta. O Parque Nacional Los Glaciares faz parte do trajeto.
Mais do que cansado, cheguei ao hostel por volta das oito da noite e tudo que pude fazer foi colaborar com uma vaquinha para comprar macarrão, molho, temperos e vinho. Tivemos uma noite curta, mas bastante divertida com massa e risadas tanínicas. Fui para cama relativamente cedo, não sem antes dar uma boa geral no equipamento. Minha bota, genérica, abriu o bico e necessitava de alguns reparos emergenciais que consegui fazer com silver tape fornecida pelo hostel. O chão calafetado colaborou e secou a bota, encharcada pela neve que passou via rasgo entre a costura e a sola.
El Chaltén
Antes da sete da manhã eu já tomava café e olhava fotos de Chaltén num livro na recepção do hostel. Desci à pé, peguei o ônibus das 8:00 e por volta de 11h desembarcava no pitoresco povoado (AR$200,00 ida e volta, passagem adquirível na rodoviária ou nos hotéis). Conhecida como a capital argentina do trekking, a cidadezinha fica a cerca de 220 km de El Calafate, encrustada entre montanhas do porte do Torre e do Fitz Roy e lagoas muito cênicas, que emolduram as paisagens belíssimas que eu ansiava por ver. A estada seria bastante curta, já que eu voltaria no ônibus das das 18h, mais num bate-e-volta de reconhecimento do que uma exploração propriamente dita. Para entender legal a região, dê uma olhada nesse mapa do Google.
Fundada em 1985 como posto fronteiço limítrofe com Chile, o vilarejo tem apenas 600 habitantes e recebe mais de 80.000 turistas por ano, 60% estrangeiros. O caminho é belíssimo: conforme avançamos rumo ano norte, saem as lengas, nirres e guindos dão lugar à estepe patagônica, bem ralinha e rasteira, numa paisagem tão erma quanto as estradas da região do Atacama chileno num cenário muito parecido com os montes em meio ao cerrado da serra mineira da Canastra. O asfalto novo em folha contrasta com a terra seca, os montes de areia e lagos incrivelmente bonitos, que iluminados pelo sol da manhã dão belas fotos.
Já a pequena Chaltén é bastante bonita, com construções abrigadas, geralmente feitas de madeira, com um aspecto rústico mas bastante moderno, cujas técnicas empregadas respeitam o que há de mais ecologicamente correto possível hoje em dia. Há grande preocupação com a Iluminação, descarte correto de lixo e métodos de economia de água para a limpeza das ruas. Um lugar e tanto para quem gosta de natureza.
A cidade também é perfeita para fotografar. Cenas insólitas, como casas abandonadas cercadas por matilhas de cães esfarrapados, cadeiras de balanço num vai-e-vem sinistro sem crianças por perto, equipamentos de trekking abandonados em alguns cantos, um ou outro habitante sem rosto, driblando os fortes e gélidos ventos do sul com toucas de lã que deixam apenas os olhos à mostras. Chaltén é uma terra de contrastes, beleza e singularidade.
No site oficial da cidade você encontra uma boa descrição de todas as trilhas auto-guiadas, que hoje resumem-se a Miradores Los Cóndores y Las Águilas (40 min.), Laguna Capri (2 horas), Piedra del Fraile (2 horas), Laguna Torre (4 horas) e Laguna De los Tres (5 horas). Na chegada a El Chaltén, o ônibus para obrigatoriamente no centro turístico onde uma guia explica o que pode e o que não pode ser feito no território do parque, apresenta um mapa local e dá todas as dicas do que fazer dependendo do tempo disponível e condições climáticas locais.
Como eu só tinha tempo para um bate e volta, optei pelas duas primeiras trilhas e gostei bastante. São muito fáceis e têm um visual fantástico, consistindo num belo aperitivo para este mochileiro que vos escreve e que pretende voltar dentro em breve para conhecer o restante. Recomendo apenas que se leve um bom abrigo e caminhe devagar nos trechos mais estreitos, pois dependendo das condições, o vento pode estar bem forte e acidentes não são raros por ali. Presenciei dois caminhantes se desequilibrarem enquanto tiravam selfies com o Fitz Roy ao fundo, caindo, felizmente, no chão ao lado. Se estivessem à beira de algum precipício, provavelmente não teriam tanta sorte.
No caminho, note que a paisagem muda muito rápido e é cheia de vida. Árvores retorcidas abrigam pássaros difíceis de avistar em outras localidades, como os “carpinteros gigantes” e os “patos de torrente”, estes mais próximos da água. Em altitudes mais elevadas, o “condor andino” não é tão difícil de avistar se você prestar atenção.
Peguei um pouco de neve na volta, o que me atrasou um pouco (quem resiste à boas fotos com neve, né?) mas consegui chegar a tempo de tomar um café na rodoviária antes do ônibus partir. Ali há wifi grátis, são servidos pratos quentes e os banheiros são bastante limpos. Tive uma viagem de volta tão tranquila quanto a de ida e cheguei a Calafate já há noite, ansiando por um bom banho quente.
Nessa noite, o hostel estava mais vazio que nos outros dias, então aproveitei para ler um pouco. Para esta viagem, levei uma coletânea de contos do argentino Jorge Luíz Borges batizada “Ficções” – textos em prosa filosófica bastante pesados que foram devidamente amaciados por um Fin del Mundo Malbec que trazia na cargueira desde Ushuaia. Foi minha noite mais tranquila de toda a viagem.
Glaciarium e Glaciobar
No dia final da minha primeira jornada pela Patagônia, aproveitei para acordar um pouco mais tarde que de costume. Cheguei equipamento, me despedi de coisas que não traria para casa (a bota de trekking, infelizmente, não suportou tanta água e variação de temperatura) e organizei os regalos que havia comprado. Li mais um pouco, deixei tudo arrumado e caminhei com calma até a sede da Secretaria de Turismo da cidade, de onde parte o busão gratuito para o Museu Glaciarium e o Bar de Gelo.
Experiência mais bobinha da viagem, só serviu mesmo para um relax diferente. O tal Bar de Gelo nada mais é que uma câmara frigorífica temática, enfeitada com neve artificial, utensílios, copos, mesas e cadeiras feitas de gelo, conservados numa temperatura em torno de dez graus negativos. Na entrada se recebe uma espécie de casaco laminado que protege da baixa temperatura e lá dentro um DJ toca um bom set de música eletrônica por cerca de trinta minutos. A entrada dá direito a beber a vontade dentre os drinks oferecidos (fernet, para variar, é a bebida mais pedida por ali). Na saída, visitei o Museu de Gelo Patagônico que apresentava uma exposição educativa com painéis, maquetes e videos sobre formação e comportamento dos glaciares da região. Valeu a pena pelas fotos e representações do Glaciar Upsala que eu não tive tempo de conhecer e é bastante interessante por ser bem maior que o Perito Moreno, apesar de bem mais difícil de acessar.
O Centro de Interpretação Glaciológico vale também pela riqueza de informações acerca das geleiras. Lá aprendi que o Perito Moreno é a terceira maior área congelada do planeta e único glaciar em todo mundo que não vem perdendo tamanho com o passar dos anos. Cresce cerca de dois metros por dia (700m por ano) porém a força da água faz com que se parta ao chegar determinado tamanho, regredindo alguns metros. São 250 km quadrados a uma altura de 60 metros em relação ao nível do Lago Argentino, onde está localizado.
Assim como seus irmãos maiores, os glaciares Viedma e Upsala, a geleira faz parte da plataforma de Gelo Continental Patagônico, um resquício da última Era do Gelo. Há um video bem interessante que mostra a formação dos glaciares pela compactação da neve forçada gravidade ao longo do tempo, junto com muitas outras substâncias que ali se depositam com o passar dos anos. A cor aparentemente azulada se deve à absorção de todas as cores pela camada de gelo, menos as de tons azuis, gerando o efeito.
Paguei AR$150 pelo open bar, incluído o ingresso do museu. Achei supervalorizado, mas como a experiência é única, não me arrependo de ter visitado.
E assim terminou minha jornada patagônica. Há muito mais a ver e explorar na região, especialmente nos arredores de El Calafate e El Chaltén, atividades que podem ser verificadas com as agências locais e algumas até por conta própria. A Patagônia argentina é um dos lugares mais bonitos de mundo e merece ser visitado e revisitado.
Pretendo voltar em breve, especialmente para fazer as demais trilhas de El Chaltén e conhecer também o lado chileno. Até lá!
Veja também: Ushuaia – Relato do mochilão a capital da Terra do Fogo
Boa tarde,
Gostaria de saber se nesses acampamentos eles disponibilizam aluguel de barraca e saco de dormir, ou temos que levar os nossos?
Obrigada